A Bíblia ainda valerá a pena?

A Bíblia pode ser lida de muitas maneiras. A pior de todas é não ser lida.

1. Ao longo destas crónicas, referi, muitas vezes, os trabalhos de exegetas de língua portuguesa ou não, que vão multiplicando investigações, cursos e livros de introdução à leitura da Bíblia. Encadernada num só volume, pode esconder a realidade de uma biblioteca de diversos autores, estilos e géneros literários muito diferentes, construída ao longo de vários séculos da antiguidade judaica e cristã. Lida e interpretada por judeus e cristãos em contextos culturais e religiosos muito diferentes, não é uma literatura morta, como a ignorância supõe.

 A minha preferência, quanto às obras de introdução, vai para um precioso livro de J. T. Barrera [1] que oferece uma visão abrangente da investigação sobre a história da Bíblia. Segundo o autor, o seu conteúdo foi amadurecendo lentamente na preparação de cursos de “Literatura do Antigo Testamento”, ministrados no Departamento de Hebraico e Aramaico da Universidade Complutense de Madrid. Incorpora também materiais de trabalho em vários cursos de Doutoramento sobre “Os Manuscritos do Mar Morto”. É um livro-texto com características de uma obra enciclopédica em muitos casos e de ensaio científico noutros. Avisa: o enciclopédico nunca pode ser exaustivo e o ensaio científico nunca é definitivo. Uma obra aberta.

De André Paul [2], foi traduzida para português a história da génese cultural da Bíblia. O autor descreve o percurso simultaneamente religioso, literário e político que fez da Bíblia a verdadeira criação cultural do Ocidente.

A relação portuguesa com a tradução da Bíblia não é gloriosa. Segundo Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), acerca do período medieval, a literatura portuguesa, em matéria de traduções bíblicas, é de uma pobreza desesperadora. Na Wikipédia, dispomos de indicações da história das traduções da Bíblia em língua portuguesa.

O documento da Comissão Pontifícia Bíblica sobre a interpretação da Bíblia na Igreja (1993), embora relembre a identidade teológica da exegese católica, deixou, finalmente, a pesquisa científica à solta. Os textos não nasceram em nenhuma fábrica divina. Até as referências postas na boca de Deus espelham o que há de melhor e pior da condição humana. Não admira que surjam como escolas de santidade e de crime.   

2. Frederico Lourenço é um autor premiado e conhecido como ficcionista, ensaísta, poeta e tradutor. Depois de dez anos na Universidade de Lisboa, é, actualmente, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi celebrada a tradução da Ilíada e a Odisseia de Homero, assim como um volume de poesia grega. Em 2015, publicou um conjunto de leituras da Bíblia [3].

“Para que fique bem claro: (…) Não sendo, todavia, de um ponto de vista religioso (cristão ou outro) que aqui escrevo sobre a Bíblia, também não escrevo sob um prisma irreligioso: sou sensível (diria mesmo hipersensível) ao apelo do Divino. (…) Não tenho nenhum problema em afirmar que, pessoalmente, considero Jesus de Nazaré a figura mais admirável de toda a história da Humanidade” [4].

3. Frederico Lourenço resolveu entrar numa aventura admirável: traduzir a Bíblia grega, Antigo e Novo Testamentos, para português. Preparação não lhe falta nem na cultura grega nem na nossa. A avaliação do resultado pertence a qualquer leitor, tanto mais que o texto não é bilingue. Será interessante ver como vai ser recebido pelos exegetas. Em ambos os casos importa conhecer o seu ponto de vista e os critérios em que assenta o seu trabalho, explicitados na introdução. O objectivo é dar a conhecer o texto bíblico. Até aí, nada de novo. No entanto, procura que, tanto a tradução como os comentários para a compreensão do texto grego, não sejam de carácter doutrinário, confessional e apologético.

O volume I [5] desta Bíblia é constituído pelos 4 Evangelhos. Vai da foz para a nascente. Confessa que temos de nos dar por felizes pelo facto destes textos maravilhosos terem sobrevivido a qualquer tentação de dar ao cristianismo um Evangelho único, artificialmente purgado de problemas, de frases e de palavras difíceis. São justamente as palavras difíceis (e muitas vezes intraduzíveis) que nos obrigam a pensar no que significou e significa ainda a extraordinária mensagem de Jesus, assim transmitida de modo tão desafiante para o crente e como para o não crente. São quatro prismas diversos. Se há verdade que todos os dias nos é confirmada pela observação objectiva da realidade humana é que, no cerne do seu valor ético, a mensagem de Jesus continua tão válida, tão certeira e tão urgente como era há dois mil anos.

A Bíblia pode ser lida de muitas maneiras. A pior de todas é não ser lida.

[1] Julio Trebolle Barrera, A Bíblia Judaica e a Bíblia cristã. Introdução à história da Bíblia, Petrópolis, Vozes, 19992.

[2] André Paul, A Bíblia e o Ocidente. Da biblioteca de Alexandria à cultura europeia, Instituto Piaget, 2014.

[3] Frederico Lourenço, O Livro Aberto: Leituras da Bíblia, Cotovia, Lisboa, 2015.

[4] Ib, p.13-14.

[5] Quetzal Editores, Lisboa, 2016

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