Viva ao chá!

Nada muda. Mas desde que haja chá e um bocadinho de Sol estamos bem.

Depois de três intensos e deslumbrantes dias a descascar batatas e a lavar pratos, atraquei no porto de Tânger, acolhido pelo sol norte-africano. O meu primeiro passo fora do navio foi algo trapalhão dada a rotina de caminhar num convés que constantemente se baloiçava para bombordo e estibordo.

Suportando um nauseante cheiro caminhei até Medina, rapidamente fiquei rodeado por diversos comerciantes abastecidos até ao mais peculiar dos fetiches.  

Subi até à Praça Nove de Maio, decidido a encontrar uma casa de chá, quando fui abalroado por um menino oferecendo-me uma caixa de pastilhas. Respondi-lhe que as comprava se me deixasse tirar uma fotografia. Instantaneamente o olhar dele alterou de um confiante mercador para uma indefesa criança. Os lábios secos do rapaz tremeram enquanto se virava para um casal de locais sentados numa esplanada. Levantaram-se e o homem preparava-se para me agredir quando é afastado por um senhor que lhe diz para se acalmar, que eu era apenas um estudante à procura de absorver e levar para a minha terra memórias da cultura e do ser marroquino – "Not journalist, student!" (irónico não? – penso eu). O homem agarrou-se ao rapaz com afecto e posa para a fotografia, dei-lhe alguns dirhams misturados com euros e seguiu em frente com um sorriso na cara. Ao virar-me para agradecer ao homem ele cumprimenta-me, perguntando-me a nacionalidade.

– Português –, disse eu, ainda gaguejando a adrenalina fora do meu corpo.

– Ah! Português aqui é família. Povo muito acolhedor. – Muy boa casa de chá vista para a cidade eu levo.

Disse chamar-se Richard e convidou-me para almoçar um excelente cuscuz e pastries, apontando no meu bloco de notas a sua morada. Quando lhe agradeço a hospitalidade coloca a sua mão no meu braço e afirma: "Agora thé!" Enquanto o seguia questionou-me se tinha visto o filme Inception. Eu aceno e ele acrescenta que Di Caprio gravou na casa de chá para onde nos dirigíamos.

Ao entrar fiquei boquiaberto com a simbiose entre a luz que trespassava pelas coloridas janelas e a escuridão que pairava sobre as mesas. Sou apresentado ao gerente e Richard pede duas chávenas de chá de menta enquanto me direcciona até uma mesa com uma vista esplêndida para a rua principal, banhada pelo oceano que abraça um horizonte em chamas.

O empregado chega com os chás e serve-nos. 

– Duas colheres de açúcar –, sugere Richard enquanto envolve os lábios na chávena de barro colorido. Eu obedeço e pergunto-lhe o que fazia da vida.

– Sobrevivo –, responde enquanto solta duas gargalhadas. – Sou pintor!

– Um artista!

– Sim, mas de brincadeira.

Rio-me enquanto mexo o açúcar com uma pequena colher de aço. Uma explosão de aromas de menta, hortelã e limão enrosca-se na minha língua e, por alguma razão, as cores azul e magenta propagam-se pelo meu pensamento. Aceno cordialmente com a cabeça e Richard acrescenta:

– Muy bueno, si? Yo hay convivido con Julio Gonzales, Luc Drappier, Paul Bowles...

– PAUL BOWLES?! –, interrompo-o eu – I'm a huge fan of him!

Richard ri-se e diz-me que o conheceu em Inglaterra e que desde aí são amigos. (Medito sobre as chances de encontrar alguém que conheceu pessoalmente o autor do livro que decidi trazer para esta viagem.)

Naquele momento fui assombrado por uma chamada do comissário a exigir que voltasse ao navio o mais rápido possível pois o recolher obrigatório já tinha passado havia meia hora. 

Desviei o meu olhar para a varanda e apercebi-me que a noite tinha consumido os últimos raios de sol. Marrocos é belo à maneira de Marrocos.  

Enquanto um grupo de rapazes desfazia as balizas de areia e guardava uma bola rasgada Richard afirmou: – Nada muda. Mas desde que haja chá e um bocadinho de sol estamos bem.  

Ergui a chávena aclamando: – Viva Marrocos!

– Viva Portugal! E viva ao chá!  Viva! –  proclamou o meu companheiro levantando-se para a despedida.

 – As-salam alaykom!

– Masa'u Al-Khair! 

Corri em direcção ao porto aproveitando cada passo, cada cheiro, cada som pela última vez.

No dia seguinte Cádis aguardava-me.  

Henrique Magalhães, 18 anos, estudante do ensino superior

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