Somos um país de migrantes, sabemos o que representa deixar o país

A Cimeira que decorre em Nova Iorque é de importância extrema.

O dia começou, quente e húmido, polvilhado de chuva intermitente, ora caindo em grossas pingas ora mais ligeiras. O programa arrancava pelas 8h, o trânsito já estava caótico com ruas cortadas.

Presta serviços à nossa missão diplomática, desde que me lembro, um motorista equatoriano, de extrema competência e simpatia, cuja figura física e atitude o aparentam a um actor de enredos policiais. Willi. À custa de trabalhar duramente, tem singrado na vida e é perceptível a evolução da sua apresentação, agora mais parecida com a de um empresário de sucesso. O extraordinário nele é que está sempre onde é preciso, encontra sempre um lugar onde parar e não descura nunca o bem-estar dos passageiros. Connosco, fala sempre em castelhano, mas, no Natal, manda-me sempre um SMS de boas festas num inglês fonético que tem de ser lido em voz alta para se compreender por inteiro. Esta manhã tive o prazer de ter o Willi à minha espera só para me saudar, pois tinha outro serviço. A rede diplomática portuguesa tem muitos willis espalhados pelo mundo, pessoas que nos prestam serviços e que, cada um nas suas funções, dão o seu melhor, sofrem as nossas aflições, festejam as nossas vitórias e torcem por Portugal, independentemente da sua própria nacionalidade. E esta é uma sensação agradável que espelha, outrossim, a capacidade que, em geral, Portugal e os portugueses têm de cativar cumplicidades.

Nas Nações Unidas, o dia é dominado pela “Reunião de Alto Nível sobre movimentos em larga escala de migrantes e refugiados”, vulgo “Cimeira sobre refugiados e migrantes”. O nosso Presidente da República faz uma intervenção a meio da manhã, o ministro dos Negócios Estrangeiros também. Ambos têm outros encontros e actos agendados. Pela minha parte, co-organizo uma sessão à margem da Cimeira, co-patrocinada por Portugal, Qatar e Grécia em associação com um vasto conjunto de organizações da sociedade civil, subordinada ao tema da educação superior nas emergências.

Desde que lancei a Plataforma Global de Apoio aos Estudantes Sírios, em Novembro de 2013, tenho desenvolvido continuados esforços nesta área negligenciada da ajuda humanitária. Apraz-me reconhecer que os mesmos não têm sido vãos, apesar da dificuldade de desconstruir mitos, preconceitos e ideias pré-concebidas que envolvem esta matéria.

Sem dúvida, perante uma emergência humanitária, há que em primeira linha acorrer às necessidades básicas dos refugiados e das populações deslocadas pela força. Mas como infelizmente estas situações tendem a ser de longa duração há que, desde muito cedo, não descurar outras vertentes e necessidades como a saúde, educação e trabalho.

Quaisquer pais, quando interrogados, põem à cabeça das suas prioridades a educação dos filhos. O mesmo acontece com os adolescentes que, quando apanhados por guerras, são obrigados a abandonar os estudos.. E quando pensamos que 51% dos refugiados tem menos de 18 anos, torna-se óbvio que a educação nas emergências — da primária, ao secundário passando pelo nível terciário — tem de ser a prioridade do século XXI, em linha aliás com a nova agenda do desenvolvimento sustentável.

Nesta sessão, que contará com a participação do nosso ministro dos Negócios Estrangeiros e do engenheiro Guterres, vamos exibir uma filme de animação, realizado por um jovem casal de talentosos criativos portugueses sobre aquilo que costumo chamar “Mecanismo de Resposta Rápida para o Ensino Superior nas Emergências”. Através deste filme, procuramos condensar as principais mensagens, tornar tangível um conceito que, caso contrário, permanece muito abstracto. O objectivo é, assim, com base no compromisso — que tem algo de histórico —, assumido pelos líderes mundiais nesta Cimeira de promover o ensino superior nas emergência (ver parágrafo 4.19 do documento final), dar um passo mais, para que as boas intenções não fiquem só no papel, mas antes tenham tradução em acções tão prontamente quanto possível.

A Cimeira que decorre em Nova Iorque é de importância extrema. Não porque venha trazer soluções imediatas para problemas que são de enorme complexidade e para os quais não há uma abordagem unânime — daí o coro de descontentes que desde já exprimiu criticas e o seu desapontamento com os resultados alcançados. Mas porque é, juntamente com outras iniciativas em curso, um passo mais no reconhecimento de um problema global que cabe à comunidade internacional resolver.

Pela minha parte, estou convicto de que é necessário desenvolver um novo paradigma para a abordagem das crises humanitárias. Primeiro, há um trabalho de conceptualização a fazer — categorias como as de refugiado, asilo, migrante, pessoas em situações de emergência têm de ser repensadas e porventura buriladas, não só porque as fronteiras conceptuais se foram esbatendo, mas também porque há muitos preconceitos encrustados e associados a algumas categorias, que só criam obstáculos adicionais quando se trata de assegurar a “protecção de pessoas” como é o caso em apreço.

Depois, há que desenvolver abordagens diferenciadoras que permitam encontrar respostas apropriadas em prazos curtos. Os “refugiados” não são uma população homogénea que deva ser tratada em bloco, a partir de uma “etiqueta” que se lhes cola. Ou seja, há que explorar vias diferenciadas que permitam proteger da melhor forma e da maneira mais apropriada possível os vários grupos e comunidades.

Um bom exemplo desta abordagem diferenciada é, precisamente, o grupo dos estudantes de ensino superior afectados por guerras, em relação aos quais venho defendendo a necessidade de criar um Mecanismo de Resposta Rápida para o Ensino Superior em Emergências.

Um último aspecto diz respeito à necessidade de os países que recebem refugiados desenvolverem estratégias nacionais de acolhimento, que englobe várias políticas públicas — só assim se pode transformar esta situação numa oportunidade para ambas as partes. Este é a meu ver um ponto essencial para que, de um paradigma de cariz assistencialista, se passe para um paradigma de integração inclusiva mutuamente benéfico que deveria estar na base de uma nova visão da protecção sustentável dos refugiados.

Portugal, nesta matéria, tem boas práticas a partilhar com os parceiros. Somos um país de migrantes, sabemos o que representa deixar o país por falta de condições para singrar na vida; sabemos o que o exílio representou para toda uma geração de portugueses perseguidos ou fugidos de um regime político autoritário; sabemos também o desafio que foi meio milhão de portugueses aquando da independência das antigas colónias.

Hoje, na Cimeira sobre os Refugiados e Migrantes, o nosso Presidente da República fez uma intervenção forte no sentido de reiterar a disponibilidade de Portugal para contribuir para a solução deste desafio prioritário da sociedade internacional.

Segunda-feira, 19 de Setembro

Notas de Nova Iorque. Por ocasião da 71.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, Jorge Sampaio está nos EUA, a convite do Presidente da República. Escreve em exclusivo para o PÚBLICO

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