Notas de Nova Iorque

Jorge Sampaio está em Nova Iorque a acompanhar o Presidente da República e escreve para o PÚBLICO.

Era Agosto, num fim de tarde, quando recebi um telefonema do senhor Presidente da República, transmitindo-me um inesperado e muito honroso convite para integrar a delegação oficial à 71ª Assembleia-Geral das Nações Unidas.

À semelhança do que tem acontecido nos últimos anos, tinha já previsto uma deslocação a Nova Iorque nessa altura, em que, pela força dos rituais da vida internacional, tem lugar um número impressionante de cimeiras, reuniões e eventos de toda a ordem, proporcionando um conjunto imenso de contactos que, caso contrário, exigiriam várias voltas ao mundo para terem lugar. Por razões de segurança, pela excepcional afluência de pessoas a uma já muito densamente povoada capital, circular em Nova Iorque durante a semana da Assembleia-Geral é um verdadeiro pesadelo, o ritmo de reuniões frenético e quase delirante o número de pessoas com quem se trava conhecimento ou se reatam contactos ano após ano. Na última década, foi na minha qualidade de representante do Secretário-Geral para a Aliança das Civilizações ou como seu Enviado para a luta contra a tuberculose que participei nesta constelação de eventos, ou ainda, como antigo presidente e membro fundador da Clinton Global Initiative (CGI), cuja reunião anual coincide com a semana da Assembleia-Geral. Este ano, tinha duas razões especiais para estar presente: por um lado, empenhei-me especialmente em acompanhar os preparativos da Cimeira da Nações Unidas sobre migrantes e refugiados que decorrerá a 19 de Setembro, tendo desenvolvido uma intensa advocacia para que o documento final reconhecesse o papel do ensino superior nas situações de conflito; por outro, desenvolvi aturados esforços para lançar uma nova iniciativa dedicada a apoiar estudantes de medicina e médicos sírios no contexto das colaborações propiciadas pela CGI.

Com o amável convite do senhor Presidente, estas actividades, modestas mas tangíveis, acabam por ganhar em visibilidade e força política, proporcionando outrossim mais-valia ao nome de Portugal e à sua projecção externa. Sempre entendi, de resto, que se há área em que um antigo Presidente pode continuar a ser útil para o país, é bem o da acção externa, aquela em que o seu nome vale pelo de Portugal e em que a sua actuação é passível de reforçar os desígnios nacionais.

Todos sabemos que este ano é especial para o nosso país. Corre o processo de selecção do próximo secretário-geral das Nações Unidas, estando o engenheiro Guterres extremamente bem posicionado face aos restantes candidatos em liça. No entanto, sabemos também que atravessamos tempos conturbados, em que princípios e valores – seja no plano do direito ou no das práticas da vida internacional – que julgávamos irreversíveis e não-negociáveis, parecem agora ameaçados e despudoradamente ignorados.

Neste mundo, preocupado por um realinhamento de hierarquias de poder e pela emergência de novas inseguranças, percebemos com desalento que mesmo a União Europeia – onde antes íamos buscar conforto, porque depositária de muitas das nossas esperanças de progresso e de equilíbrios estratégicos – tem revelado uma crescente impotência decisória, caminhando para a paralisia, que parece ser a marca maior da sua política externa. Ao mesmo tempo, vem revelando no seu seio – o que será mais grave para o futuro do projecto europeu – uma divisão e uma evidente quebra de confiança entre os seus membros, em que os antigos valores de solidariedade e de respeito mútuo surgem trocados pelo arremesso público de anátemas, humilhações, e pela imagem notória de fracturantes egoísmos nacionais.

Perante este quadro sombrio, importará todavia lembrar que, da História, e da sua lenta e pouco linear passada de anos e séculos, nos chega igualmente um sólido acervo de realizações que justificam que continuemos a acreditar num futuro melhor e na evolução positiva da sociedade em que vivemos, no plano nacional ou internacional. As Nações Unidas foram e são produtoras de boa parte deste acervo e, mesmo apesar de todas as suas imperfeições, bloqueios e fracassos, deverão continuar a ser a instância suprema de regulação da vida internacional até porque, a alternativa, é um mundo sem regras, a desordem ou o caos, onde imperam a lei da selva e a barbárie.

Espero sinceramente que se possa assistir nos próximos anos ao reforço do papel regulador das Nações Unidas no plano estratégico, económico, ambiental ou jurídico; que se consolide a sua capacidade de intervenção e produção de resultados no triplo plano dos objectivos e princípios e subjacentes à sua missão – a saber, a manutenção da paz e da segurança internacional; o desenvolvimento sustentável; e o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais –; e que se adaptem as suas instituições e modo de funcionamento às realidades do século XXI pois também o passar do tempo e as acentuadas mudanças, criadas pela globalização e pelas alterações dos equilíbrios geo-estratégicos mundiais, lhe têm retirado capacidade de resposta e eficácia.

A 71ª Assembleia Geral abre na terça-feira, dia 20 de Setembro. Por trás dos discursos, por vezes excessivamente formais, corre sempre um conjunto de questões prioritárias, preocupações e expectativas, caras a cada Estado membro, a que é preciso estar atento e que há que saber ouvir, articular e contextualizar.

Temo que não haja muitas razões para estar optimista quanto ao futuro da nossa vida colectiva, mas tenho, isso sim, a certeza absoluta de que só com mais e melhor multilateralismo poderemos evitar o pior. Tenho também por certo que países como o nosso podem contribuir - e muito - para reforçar pontes e desenhar os consensos necessários para tornar o mundo um lugar melhor para todos. É animado por este espírito que me sinto particularmente orgulhoso e honrado por poder fazer parte da delegação portuguesa.

Domingo, 18 de Setembro

Ex-Presidente da República

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