Rússia acusa EUA de "negligência criminosa" e avisa que trégua está em risco

Pela primeira vez desde o início do cessar-fogo, bairros de Alepo foram bombardeados. Regime sírio diz que ataque em Deir Ezzor foi deliberado; EUA denunciam "hipocrisia" russa.

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A ajuda humanitária continua a não chegar aos bairros de Alepo controlados pela oposição Youssef Karwashan/AFP

A trégua em que ninguém acreditava (mas em que todos ainda depositavam alguma esperança) parece prestes a desmoronar-se. Pela primeira vez desde que entrou em vigor, há seis dias, bairros controlados pelos rebeldes na cidade de Alepo foram bombardeados por aviões. Horas antes, a Rússia acusou os Estados Unidos de “negligência criminosa”, afirmando que o ataque aéreo da coligação internacional contra o Estado Islâmico que no sábado matou dezenas de soldados sírios em Deir Ezzor (Leste) deixou por um fio o cessar-fogo.

O Observatório Sírio dos Direitos Humanos adiantou que as bombas caíram durante a tarde em quatro bairros no Norte daquela que já foi a capital económica da Síria. A organização diz não ter recebido informações sobre vítimas, nem adianta a quem pertencem os aviões que lançaram o ataque. Desde sexta-feira que tanto os rebeldes como o Exército sírio denunciaram inúmeras violações do cessar-fogo na cidade, mas ao contrário de outras zonas, onde já houve combates, não se podia falar ainda num regresso aberto da violência.

Mas a situação pode mudar rapidamente: pouco antes de noticiado o ataque aéreo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo denunciou um aumento da tensão na cidade, acusando a rebelião de estar a preparar acções militares “em larga escala” contra o Exército sírio. Moscovo acusou ainda os Estados Unidos de não estarem a cumprir a promessa de convencer os grupos rebeldes que apoiam a distanciar-se da Fatah al-Sham, a designação assumida pela antiga Frente al-Nusra após cortar a ligação oficial à rede terrorista Al-Qaeda.

Numa entrevista este domingo à Al-Jazira, o líder deste grupo, o maior e mais bem armado na região, afirmava que nem ele nem os grupos aliados “vão aceitar que o cerco a Alepo continue”, por maior que seja a pressão internacional. A ameaça de Abu Muhammad al-Jolani surgia na mesma altura em que a ONU reconhecia que ainda não seria neste domingo que poderiam avançar os 40 camiões com ajuda humanitária que há vários dias esperam autorização para entrar nos bairros do Leste de Alepo, controlados pela oposição. “Este é um momento muito difícil”, disse à Reuters um responsável da organização, lembrando as 300 mil pessoas que ali vivem cercadas.

Troca de acusações

E se a situação no terreno deixa poucas esperanças de que o cessar-fogo, em vigor desde segunda-feira, pode ser prolongado por mais uns dias, o cepticismo aumenta perante as palavras azedas trocadas entre Rússia e os Estados Unidos, sobretudo depois do ataque de sábado contra o aeródromo de Deir Ezzor – Rússia e Síria falam em 60 soldados mortos, o Observatório aponta para pelo menos 90.

Rejeitando a versão americana, o regime sírio insiste que o ataque foi “premeditado” e “deliberado”, tendo permitido aos jihadistas lançar uma ofensiva contra a zona do aeródromo. Damasco assegura que a ofensiva foi rechaçada, mas já neste domingo o EI reivindicou o abate de um caça de Damasco.

As acções contra os jihadistas não estão abrangidas pela trégua, mas o bombardeamento mina a pouca confiança que já existia entre americanos e russos e torna mais difícil que os dois países passem à etapa seguinte do acordo assinado no início do mês e que previa a criação de um centro de comando conjunto para combater o Estado Islâmico e al-Sham. Nos últimos dias, Moscovo insistiu que havia condições para negociar o prolongamento da trégua e começar a discutir a cooperação militar, mas Washington avisou que isso não acontecerá até que a ajuda humanitária comece a chegar às zonas cercadas pelo Exército sírio.

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A embaixadora dos EUA na ONU, Samantha Power, sublinhou que Moscovo nunca se indignou com "as atrocidades" do regime sírio Andrew Burton/Getty Images/AFP

“As acções dos pilotos da coligação – se como esperamos não foram resultado de uma ordem de Washington – estão na fronteira entre a negligência criminosa e a conivência directa com os terroristas do Estado Islâmico”, acusou o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, num comunicado muito duro este domingo. Moscovo alega ainda que a morte dos soldados é uma consequência directa da “recusa teimosa” dos americanos em coordenarem as suas operações militares na Síria com a Rússia.

Horas antes, à margem de uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU, o embaixador de Moscovo, Vitali Churkin, tinha já avisado que ataque deixava o acordo de cessar-fogo “em sério risco”. A sua congénere americana não foi menos dura, acusando a Rússia de “hipocrisia”. Samantha Power assegurou que os aviões da coligação suspenderam o ataque mal receberam informações de que no terreno estavam forças sírias e, em declarações aos jornalistas, acrescentou: “Desde 2011, o regime sírio ataca intencionalmente alvos civis com uma regularidade horrífica e previsível… e em perante estas atrocidades nunca a Rússia se manifestou indignada, ou pediu investigações”.

Já em Nova Iorque, onde nesta segunda-feira a Assembleia-Geral da ONU arranca com uma conferência sobre refugiados, o chefe da diplomacia francesa acusou o regime de ser o “principal responsável” pelas violações do cessar-fogo. Jean-Marc Ayrault disse ainda esperar que, apesar do ataque em Deir Ezzor, seja possível nos próximos dias salvar o acordo celebrado entre russos e americanos.

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