Há impostos de que a direita gosta, mas quem os aumenta é a esquerda – e vice-versa

A esquerda é mais pela tributação do património e rendimentos e a direita pela taxação do consumo. Mas os governos nacionais têm sucessivamente contrariado essa tendência, coagidos pela necessidade de receitas.

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Em Portugal, quase metade (47%) das famílias está isenta de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares Rui Gaudêncio

A aplicação de impostos em Portugal no tempo da democracia mostra bem a distância que pode existir entre a teoria e a prática. Teoricamente, a esquerda tende a preferir taxar mais os rendimentos e o património das famílias, numa argumentação de que ‘quem mais tem mais deve contribuir’, usando a tributação progressiva como uma engenharia redistributiva que sustenta o Estado social. Já a direita, tendencialmente menos interventiva na economia, tem uma maior propensão para apostar em impostos sobre o consumo, tributando, numa base de igualdade, as opções dos consumidores.

Olhando para a panóplia de contribuições exigidas aos portugueses, é possível fazer uma distinção entre impostos tradicionalmente de direita ou de esquerda? Aparentemente, a resposta a essa pergunta já foi mais fácil. O que manda hoje é a necessidade de arranjar dinheiro para sustentar as despesas. E os impostos, mais do que um instrumento de justiça social, assumem o papel de instrumento de consolidação orçamental.

“Em teoria, a direita deveria apostar nos impostos indirectos [sobre o consumo, como o IVA, IUC, ISV, IMT] e a esquerda nos directos [rendimentos e património, como o IRS, IRC e o IMI]. Estes últimos têm uma progressividade implícita, pelo que é possível cobrar mais a quem mais tem”, começa por descrever Vasco Valdez, jurista em assuntos fiscais. Mas na prática nem sempre é assim. E o especialista, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco Silva (1993-95) e de Durão Barroso (2002-04), recorda que “Vítor Gaspar, percebendo que um aumento dos impostos indirectos não teria o resultado que precisava nas receitas do Estado, apostou no brutal aumento de impostos nos rendimentos”. O exemplo estende-se ao Governo de António Costa, um executivo de esquerda, mas que “apostou na tributação indirecta, com o aumento do imposto sobre os combustíveis”.

Inversão dos papéis

Sérgio Vasques, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do segundo Governo de José Sócrates, realça que no ADN dos impostos à esquerda está inscrita a matriz social do Estado e essa filosofia ainda se encontra hoje no texto da Constituição portuguesa. “Agora há uma inversão de papéis: a esquerda está mais atenta ao IVA, querendo a sua redução, como aconteceu na restauração, e como se reclama na energia.”

Olhando para o historial de criação de impostos e contribuições ou para os aumentos sucessivos, percebe-se que a teoria de que há uns impostos preferidos pela esquerda e outros pela direita não tem grande aplicação na realidade fiscal portuguesa. Por exemplo, o IRS – Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares, foi criado no Governo de Cavaco Silva para harmonizar um conjunto de impostos aplicados aos trabalhadores. Entre 1995 e 2015, o crescimento da receita de IRS foi-se fazendo, em muitos anos, a um ritmo médio de cerca de 500 milhões de euros por ano, mas de 2012 para 2013 houve um salto de mais de três mil milhões de euros, explicado pelo “brutal aumento” de impostos decidido por Pedro Passos Coelho e Vítor Gaspar. “Nos últimos quatro a cinco anos, o grande agravamento dos impostos sobre o rendimento foi feito pela direita. Porquê? Por razões de necessidade”, afirma Sérgio Vasques.

O IVA – Imposto sobre o Valor Acrescentado foi criado em 1984, durante o executivo do bloco central liderado por Mário Soares, no processo de preparação para a entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia, onde se exigia um mínimo de uniformização fiscal – e teve até a oposição do PCP e do CDS, recorda Sérgio Vasques. Depois, foi aumentado um ponto por Cavaco Silva (1995), dois por Barroso (2002) e mais quatro pontos por Sócrates (em 2005 e 2011), até chegar aos 23%. Passos Coelho subiu de escalão diversos produtos e serviços, como a restauração e a energia e muitos alimentos. Estes impostos foram criados mais pela força das circunstâncias – era preciso mais receita – do que pela ideologia dominante do Executivo no poder na altura.

“A tributação indirecta sempre foi predominante em Portugal. Havia quem aumentasse o IVA por convicção e outros por necessidade. O IVA sempre foi um plano B para governos de esquerda e de direita, para compensar a degradação das contas públicas”, admite o antigo secretário de Estado do segundo Governo de José Sócrates, Sérgio Vasques.

Ideologia só nas despesas?

No período da gestão de Sócrates, a primeira medida fiscal, dois meses depois de chegar a São Bento, foi aumentar o IVA, um imposto teoricamente de direita, de 19 para 21% e em 2011 acabaria por passá-lo de 21 para 23%. Durante esses anos, também se assistiu à criação de diversas de contribuições como a das lâmpadas de baixa eficiência energética, da parcela dos seguros automóveis para a Prevenção Rodoviária Portuguesa, da licença especial de ruído, da taxa de recursos hídricos; agravou-se a carga fiscal sobre o automóvel substituindo o imposto municipal sobre veículos pelo imposto único de circulação, passando a taxar mais os veículos mais poluentes e agravando os emolumentos do registo de automóveis. Foram ainda criadas taxas de regulação (da qualidade da água, das infra-estruturas rodoviárias), e para os prestadores de serviços, como na saúde.

Antes, outro socialista (António Guterres) apostara em aumentos do IMT/Sisa, do tabaco e do álcool, dos impostos do selo para diversos produtos e serviços, e na criação da taxa intermédia do IVA.

“Não há uma cultura de esquerda e direita nas receitas, apenas nas despesas. Quando se trata de arrecadar dinheiro, tanto faz a cor política. Hoje a despesa pública aumentou de forma astronómica, a dívida está em 130% do PIB – isso não se consegue sustentar sem aumentar impostos, é incontornável”, admite o antigo governante social-democrata.

Mas Vasco Valdez avisa que “a margem de manobra está a chegar ao fim”. “Num país onde apenas metade das famílias paga IRS não se pode continuar a penalizar mais a classe média.” Que impostos se podem ainda aumentar? É difícil dizer. A Europa permite que o IVA chegue aos 25% (em 2015 este imposto representou uma receita de 15 mil milhões de euros para o Estado português), e há países onde a taxa máxima de IRS está ainda acima da portuguesa – no ano passado as famílias pagaram um total de 13 mil milhões de euros. Mas no IRC (que chegou aos 5,5 mil milhões de euros em 2015), Portugal está já no pódio da taxa máxima aplicada.

O resultado para os contribuintes passa por um mix entre a taxação de rendimentos, consumo e património, que os diferentes governos vão equilibrando consoante a sua ideologia ou, na maior parte das vezes, conforme a necessidade do momento, admite Sérgio Vasques.

Estratégia eleitoral

E os aumentos de impostos têm atingido os alvos certos? Apesar de estarem em pontos ideológicos opostos, Sérgio Vasques e Vasco Valdez consideram que sim, mas admitem que “não se pode continuar a penalizar mais a classe média”. O facto de quase metade das famílias estarem isentas de IRS mostra que “há, de facto, progressividade neste imposto”, mas Vasques admite que se está a tributar mais a classe média alta do que os milionários, que “têm maiores possibilidades de evasão”.

A tributação dos rendimentos, do património ou do consumo é um dos calcanhares de Aquiles de qualquer governo: a criação, o aumento ou a redução de impostos ou taxas pode ajudar a ditar o seu futuro político, influenciar eleições, condicionar o crescimento da economia do país. A um ano das eleições legislativas que lhe deram o segundo mandato, José Sócrates baixou a taxa máxima do IVA em um ponto (Julho de 2008), e nove meses depois de as ganhar voltou a agravar aquele imposto em um ponto percentual nos três escalões.

Apesar dessa influência, os partidos do arco da governação tendem a fugir de inscrever no seu programa eleitoral ou de Governo promessas sobre impostos, não indo muito além de “referências pontuais sobre o reforço da progressividade no IRS, por exemplo”, recorda Sérgio Vasques. Ninguém se lembraria de lá colocar aumento de impostos por ser uma proposta perdedora.

Na Europa, os países nórdicos, tendencialmente de direita, são os que têm impostos mais elevados. Segundo dados da OCDE relativos a 2014 revelados no início deste ano, a Dinamarca é o país mais taxado, com uma receita fiscal total equivalente a 50,9% do PIB; seguem-se a França (45,2%), Bélgica (44,7%), Finlândia (43,9%), Itália (43,6%, Áustria (43%), Suécia (42,7%), Noruega (39,1%) e Islândia (38,7%). Portugal é o 16º, com 34,4%, igual à média dos países da OCDE.

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