Nomeação de júris no cinema

A manter-se este modelo, o Governo cauciona uma ideia de que os concursos de apoio ao cinema são uma distribuição automática de dinheiros públicos àqueles que se revelem mais fortes ou influentes.

O compromisso com um “reforço claro do investimento na cultura" no OE 2017 manifestado recentemente em declarações públicas pelo Sr. Primeiro-Ministro, Dr. António Costa, só pode ser saudado pelos agentes culturais, acossados desde há muito por trabalharem num sector cronicamente subfinanciado.

No entanto, esta aposta só será consequente se o Governo a fizer acompanhar, sem tropeços ou embaraços, de uma política cultural reconhecível, com linhas de orientação claras e regras de participação idóneas e transparentes, e com entidades públicas capazes de a executar.

O processo de nomeação de júris para os concursos públicos de apoio ao cinema que, desde 2014, a atual Direção do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) executou, na vigência do anterior Governo, é um exemplo de como a aposta do Governo pode tropeçar, caso o pretenda manter. Senão vejamos: os nomes dos júris desses concursos têm sido propostos ao ICA pelos seus próprios potenciais beneficiários (associações profissionais, representantes das televisões, representantes dos operadores de audiovisual, personalidades convidadas, todos com assento na SECA – Secção Especializada do Cinema e Audiovisual do Conselho Nacional de Cultura). Neste processo, o ICA reserva-se o papel de promover a reunião desses elementos, secretariar as votações e enviar a lista final para o gabinete do responsável pela tutela da Cultura para homologação. Desta prática, resultou um insuportável ambiente de suspeição sobre decisões de apoio tomadas por júris cujo perfil, na sua ampla maioria, está muito longe dos requisitos que a Lei estabelece: “personalidades com reconhecido currículo, capacidade, idoneidade e com manifesto mérito cultural e competência para o desempenho da atividade de jurado".

Desde 2014, os abaixo-assinados e uma representativa maioria de agentes do cinema, têm-se manifestado contra a perversidade deste processo, invocando duas razões de fundo para tal:

1) a participação ativa no processo de decisões sobre apoio ao cinema de entidades privadas com interesses de mercado é incompatível com qualquer ideia de política cultural promovida pelo Estado - justificada na origem precisamente pelo reconhecimento da necessidade de regulação de mercado - visando criar condições para a existência de filmes que, pelo facto de não seguirem regras instituídas de modelos industriais, dificilmente reuniriam os meios para se concretizar;

2) manifesta impossibilidade de garantir a equidistância necessária para julgar os projetos se sobre os membros do júri - apadrinhados por cada um dos seus proponentes - não recair inevitável suspeita de que estão ali para defender o interesse direto de quem os nomeou.

Acresce ainda que, desde o ano passado, foi introduzida mais uma insensata nuance a tão absurdo processo. O ICA pediu aos proponentes para fazerem acompanhar cada nome de júri com uma declaração assinada por este, onde se afirmaria disponível para integrar a lista de júris. Sob pretexto de simplificar perdas de tempo administrativas, não percebeu a Direção do ICA que tinha acabado de dar forma final ao vinculo entre proponente e proposto, fazendo depender o processo de nomeações de uma relação pessoal prévia estabelecida entre eles.

Não nos parece necessário transpor estes procedimentos para o campo de outros concursos públicos (imagine-se um representante da Mota Engil a chegar ao Ministério das Obras Públicas com propostas para o júri do concurso a que se quer candidatar, trazendo inclusivamente papéis assinados por eles...) para entender que a promiscuidade deste sistema, se não atenta contra leis gerais relativas a concursos públicos, atenta certamente contra toda e qualquer regra de bom senso.

Parece-nos surpreendente que, à semelhança do anterior Executivo, o atual não seja sensível ao argumento do primeiro ponto, achando possível que representantes da MEO, da NOS e dos operadores privados de televisão possam decidir o perfil dos decisores do cinema em Portugal sem que existam conflitos de interesse e insanável contradição com os princípios que presidem à própria ideia de política de apoio ao cinema promovida pelo Ministério da Cultura.

Parece-nos ainda mais surpreendente que a Tutela – esta, a anterior ou qualquer outra – possa aceitar sem incómodo o modelo de absoluta promiscuidade criado pela Direção do ICA, onde um tráfico de influências devidamente regulamentado serve para agentes diretamente interessados no resultado dos concursos condicionarem antecipadamente os seus resultados.

A manter-se este modelo, o Governo cauciona uma ideia de que os concursos de apoio ao cinema são uma distribuição automática de dinheiros públicos àqueles que se revelem mais fortes ou influentes junto da Direção do ICA, abstendo-se de assegurar as regras mínimas de idoneidade no decorrer do processo.

Nós, os abaixo-assinados, não nos conformaremos com este processo e dele recusamos fazer parte. Não queremos ser chamados para propor ao ICA nomes de júris, nem queremos que outros interessados diretos no resultado dos concursos o façam. Queremos a alteração do decreto-lei que permita devolver a responsabilidade da escolha dos júris ao ICA, como sempre sucedeu no passado, assegurando a neutralidade e equidistância necessárias a estes procedimentos. Queremos que isso se faça com uma Direção do ICA capaz de assumir as suas responsabilidades no processo. E queremos acreditar que a passividade do atual Ministério da Cultura, se deva apenas a uma falta de atenção que seguramente ainda vai a tempo de corrigir.

Primeiros subscritores:

Alexandre Oliveira, Filipa Reis, Ivo M. Ferreira, Joana Ferreira, João Botelho, João Canijo, João Matos, João Nicolau, João Pedro Rodrigues, João Salaviza, Leonor Teles, Luís Urbano, Marco Martins, Margarida Cardoso, Margarida Gil, Miguel Gomes, Pedro Borges, Pedro Costa, Pedro Peralta, Rita Azevedo Gomes, Salomé Lamas, Sandro Aguilar e Teresa Villaverde

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