Os deploráveis estão entre nós

Há um certo desconforto democrático em admitir que uma grande parte do povo possa ter ideias ou sentimentos repugnantes

Há uns dias Hillary Clinton disse que “metade dos apoiantes de Trump” eram um “cabaz de deploráveis” — “racistas, sexistas, homofóbicos, xenófobos, islamofóbicos, tudo e mais alguma coisa”. Trump replicou acusando Clinton de insultar “americanos esforçados e trabalhadores” e aproveitou para fazer um anúncio televisivo contra a sua adversária.

Até aqui tudo normal. Clinton cometeu um erro político, Trump aproveitou a brecha. Qualquer escândalo deste género é hoje infalivelmente previsível — com os “politicamente incorretos” sempre à cabeça, tanto para ofender como para se declararem ofendidos. Clinton acabou pedindo desculpa por ter usado a palavra “metade”.

A questão é que ela não pecou por excesso. Pecou por defeito. Bem mais de metade dos apoiantes de Trump, segundo as sondagens, acham que os muçulmanos deveriam ser impedidos de entrar no país (76%), ou exprimem “ressentimento racial” (81%) quando colocados perante perguntas concretas sobre pessoas com outra cor de pele. Em pormenor, pelo menos 30% consideram que os negros são menos inteligentes do que os brancos, ou mais preguiçosos (40%), ou mais criminosos (47%). Mais de oitenta por cento concordou com Trump quando este falou de “violadores” para descrever os imigrantes mexicanos. E por aí adiante.

Não custa a muitos europeus acreditar que isto possa ser assim. Mas tivemos há pouco tempo um caso que revelou a mesma dinâmica, e foi bem mais complicado aceitar essa realidade no debate público europeu. Falo do Brexit. No imediato pós-referendo, quem mencionou a prevalência do racismo ou da xenofobia entre os votantes pela saída da UE foi muitas vezes confrontado com a resposta: “não estás a dizer que 52% dos britânicos são racistas, certo?”. E daí? Serem só metade dos 52% não refutaria o argumento: uma grande concentração do ressentimento racial e xenófobo pode mudar a política de continentes inteiros para pior e negá-lo só torna as coisas mais perigosas.

Há um certo desconforto democrático em admitir que uma grande parte do povo possa ter ideias ou sentimentos repugnantes. Ou que uma parte da classe operária (votante em Trump ou no Brexit) possa ser racista. Mas esse desconforto é equivocado e não é democrático. Ser democrata não é achar que a maioria tem sempre razão ou decide sempre da melhor maneira, mas que a maioria tem uma legitimidade política maior para tomar decisões políticas (mas não judiciais ou médicas, por exemplo). Ser de esquerda não é achar que a classe operária está isenta de ter sentimentos racistas. E ser progressista não implica ficar calado quando são os “perdedores da globalização” a dar voz às ideias mais reacionárias.

Temos uma certa dificuldade em admitir que pessoas trabalhadoras e simpáticas possam ser também racistas ou sexistas. Mas se assim fosse nunca certos políticos teriam tantos votos como têm e nunca o apartheid ou a inquisição teriam durado tanto quanto duraram. As pessoas boas não acham só coisas boas.

A obrigação de quem gosta da humanidade é lembrar sempre que os deploráveis estão entre nós, são como nós e muitas vezes somos nós mesmos. Quem queriam vocês que eles fossem?

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