Acordo de cessar-fogo num país com muitas guerras dentro dele

Trata-se da 18.ª grande iniciativa de paz e o texto que permanecerá secreto foi assinado após 13 horas de reuniões entre Kerry e Lavrov. Os sírios gostavam de acreditar.

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Os destroços de um mercado depois de bombardeamentos em Idlib, sob controlo da oposição Ammar Abdullah/Reuters

Passaram poucos dias desde que a Turquia se lançou numa incursão militar repentina que complicou ainda mais o caos sírio e tornou claro que no conflito do país onde ainda manda Bashar al-Assad cada um dos intervenientes combate a sua própria guerra.

Apesar disso, este sábado começou com os Estados Unidos e a Rússia a anunciarem um acordo de cessar-fogo — uma trégua de sete dias que deve começar na noite de segunda-feira e, a confirmar-se, abrir caminho à criação de uma célula comum para coordenar os ataques contra o Daesh e a Frente al-Nusra (que mudou de nome depois de anunciar o corte com a Al-Qaeda).

Trata-se da 18ª grande iniciativa de paz e o texto que permanecerá secreto (para impedir esforços para o sabotar) foi assinado após 13 horas de reuniões entre o secretário de Estado americano, John Kerry, e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. A Rússia, garante Lavrov, já conseguiu de Damasco o “sim” fundamental.

A principal novidade nesta iniciativa (para além da decisão de Washington e Moscovo de combaterem finalmente juntos os radicais) é que o regime deixará de poder voar nas zonas sob controlo da oposição — os ataques aéreos sírios (e, muitas vezes, russos) contra estes alvos são a principal fonte de mortes entre a população síria, numa guerra que já fez mais de 400 mil mortos.

“Ninguém está a construir isto a partir da confiança”, disse Kerry, quase uma semana depois de Barack Obama ter justificado com a “desconfiança” existente entre as duas potências a impossibilidade de anunciar alguma novidade sobre a Síria na reunião do G20 onde esteve com Vladimir Putin. “Isto baseia-se em vigilância, cumprimento e interesse mútuo”, completou Kerry. “Esta é uma oportunidade e, até se tornar realidade, não vai ser mais do que isso.”

Os observadores não reagiram com grande optimismo. Os sírios, então, já nem sabem como reagir a mais um anúncio de Kerry e Lavrov. Para a oposição e os activistas (mas também para os rebeldes e os civis dentro da Síria), os russos não são simplesmente confiáveis. Ao mesmo tempo, já deixaram de esperar que a solução para os seus pesadelos parta dos Estados Unidos ou da Administração Obama.

Se os rebeldes no terreno aceitarem este acordo, e é muito provável que assim seja, será por não terem alternativa — aliás, a Rússia só voltou a conversar com Washington depois de a oposição ter posto em causa a estabilização da frente de batalha em Alepo, a grande e agora destruída cidade do Norte da Síria, o maior prémio desta guerra se a pensarmos apenas entre regime e rebeldes opositores. Agora que as forças do ditador, apoiadas por bombardeamentos russos, voltaram a dar a volta ao conflito já Moscovo (e Damasco, claro) admitiu voltar a negociar.

A primeira prova será, como sempre, o cessar-fogo, depois do de Fevereiro, que permitiu uma ilusão de normalidade a milhares de sírios que há anos não saíam de casa sem ouvirem bombas mas que nunca chegou a ser realmente cumprido. A data de início foi acordada para ser simbólica e coincide com o Eid al-Adha, a festa muçulmana do sacrifício que assinala o fim da grande peregrinação a Meca, o lugar mais sagrado do islão.

Se for cumprido logo de início, o Exército sírio deve aligeirar o cerco nas áreas controladas por rebeldes em Alepo e permitir que a muito necessitada ajuda humanitária comece a chegar às partes da cidade onde se passa fome. Ao mesmo tempo, os rebeldes deixarão de combater em redor das zonas detidas pelas forças leais a Assad.

O enviado da ONU para a Síria, Steffan de Mistura, estava com Kerry e Lavrov em Genebra e anunciou que fará tudo para pôr este envio da ajuda em marcha, ao mesmo tempo que disse que se prepara para pedir ao Conselho de Segurança autorização para reiniciar as negociações de paz entre o Governo e a oposição.

Se tudo correr como previsto no melhor dos cenários, uma semana depois, os militares russos e americanos vão começar a planear operações conjuntas contra os radicais. O que Washington cedeu aqui, mesmo se não o admite, é ter colocado no mesmo saco o Daesh e a Nusra (agora, Frente para a Conquista da Síria).

Separa rebeldes uns dos outros

Para que isto seja possível, os americanos ficaram de convencer os diferentes grupos rebeldes que apoiam a separar-se da Nusra onde têm combatido o regime juntos. Ora, isto é difícil de dizer mas quase impossível de fazer, tendo em conta a complexidade e flexibilidade de alianças no terreno. Na prática, este desafio é de longe o maior para manter o cessar-fogo.

Em troca, mais uma vez, a Força Aérea Síria (muito mais poderosa, neste momento, que o seu delapidado Exército) deixará de actuar nas zonas que EUA e Rússia tomarem por alvo, permitindo assim menos confusão na gestão do dia-a-dia.

“Hoje, os Estados Unidos e a Rússia estão a anunciar um plano que esperamos reduza a violência, reduza o sofrimento e permita o reinício do caminho em direcção a uma paz negociada e a uma transição na Síria... que, se for seguida, pode oferecer ao conflito um momento de viragem, um momento de mudança”, disse Kerry, com todo o optimismo que conseguiu imprimir às suas declarações.

Não há optimismo que resista a mais de cinco anos de uma guerra cada vez mais complexa, ao ponto de ser quase impossível de descrever. Com a entrada na Turquia o que passou a acontecer no Norte da Síria é que os EUA viram como as forças rebeldes sírias apoiadas pela Turquia, aliado fundamental de Washington, se envolviam em confrontos com as milícias curdas, o maior aliado dos americanos no combate ao Daesh. Sim, os EUA estão a combater entre si no Norte do país e isto é literal, apesar de ser através de aliados e não com tropas americanas directamente.

Esta é a 18ª grande iniciativa de paz, num processo capaz de matar qualquer ingenuidade iniciado pelo ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan em 2012, quando era ele o enviado da ONU e da Liga Árabe para o conflito. Mistura já é o terceiro representante internacional para a Síria; Obama ainda é Presidente mas por pouco tempo. Só Assad continua no mesmo palácio presidencial de Damasco, apesar de tantos presidentes terem dito que a sua saída era obrigatória e urgente ao longo dos últimos anos.

O Norte do país

A Turquia entrou na guerra sem aviso, mas disse que os EUA estavam há muito avisados. Ou seja, para Ancara, é impensável que os curdos sírios tenham continuidade territorial entre as duas regiões (ou cantões) que controlam no país. Já terá mesmo assegurado que conta com o apoio dos líderes curdos iraquianos neste seu combate. Pelo meio, tornou-se mais disponível para combater o Daesh, depois de anos a ser acusada de permitir que os seus combatentes entrassem e saíssem do país usando a sua fronteira e os seus aeroportos.

O que tudo isto significa é que não param de começar novas guerras num país onde já há forças iranianas, russas, americanas, turcas, para além de milícias iraquianas, libanesas... E a oposição síria e os combatentes do Daesh. E há grupos apoiados pelos sauditas ou qataris. Não é só que cada actor tenha os seus objectivos e combata, por isso mesmo, a sua guerra; é que há mesmo várias guerras a acontecerem em simultâneo. Pelo meio, morrem sírios.

O acordo deste sábado pode salvar vidas e isso, nesta guerra, é mesmo quase tudo. Se vai contribuir para uma solução de futuro é uma conversa muito diferente. E mesmo que pareça contrariar a ideia que cada um combate a sua própria guerra na Síria, ao colocar americanos e russos potencialmente lado a lado na luta contra os terroristas, a verdade é muito mais complexa. Não é por se unirem contra o Daesh por interesse comum que Moscovo e Washington deixaram de ter a sua agenda e de travar na sua própria guerra.     

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