De Estrasburgo, alegrias tristes...

Há juízes portugueses que não aceitam a liberdade de expressão.

Quando Portugal, em 2000, foi condenado pela primeira vez pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por os tribunais portugueses nos terem impedido de termos acesso à liberdade de expressão a que temos direito, vivi uma grande alegria.

Apresentei a queixa no TEDH por o então director do jornal PÚBLICO, Vicente Jorge Silva, ter sido condenado pelo crime de abuso de liberdade de imprensa e numa indemnização a Silva Resende, então director do Jornal de O Dia e possível candidato, pelo CDS-PP, à Câmara de Lisboa.

Vicente Jorge Silva tinha escrito um editorial em que, a dado passo, afirmava: “Basta ler os excertos dos artigos recentes de Silva Resende, que publicamos nestas páginas, para se fazer uma ideia da personagem que o novel Partido Popular quer candidatar ao principal município do país. Será inverosímil e grotesco – mas é verdadeiro. Nem nas arcas mais arqueológicas e bafientas do salazarismo seria possível desencantar um candidato ideologicamente mais grotesco e boçal, uma mistura tão inacreditável de reaccionarismo alarve, sacristanismo fascista e anti-semitismo ordinário”. O visado apresentara uma queixa criminal mas a juíza de 1.ª instância, pessoa inteligente, embora considerasse as expressões utilizadas "incisivas, deselegantes, ferozes e até brutais", entendeu que o director do PÚBLICO tinha o direito de manifestar a sua opinião não estando em causa o bom nome de Silva Resende já que "os leitores do jornal Público não poderiam de boa-fé formular qualquer juízo negativo sobre a forma de estar do Dr. Silva Resende: na família, na profissão, nos negócios, no jornalismo ou no desporto; mas tão só sobre a suas posições político-ideológicas".

Infelizmente, três tristes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa decidiram revogar a absolvição e condenaram Vicente Jorge Silva, aproveitando um deles para, numa atitude de mestre-escola, perorar sobre o que os portugueses podiam e não podiam dizer. Revoltado com o “cheiro a ranço”, apresentei a queixa em Estrasburgo que deu origem à primeira condenação de Portugal por violação da liberdade de expressão consagrada, para bem de todos nós, no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).

Depois disso, já houve numerosas condenações de Portugal por violação do nosso direito à liberdade de expressão e, confesso, que me alegrei com muitas delas mas, dezasseis anos depois, mais uma condenação do nosso país, como a que ocorreu na passada terça-feira, já me entristece pelo que revela ao mundo da cultura de parte da nossa justiça.

Na verdade, convenço-me   que alguns dos nossos juízes não querem mesmo perceber o que é a liberdade de expressão numa sociedade democrática e preferem ignorar a CEDH apesar de ser lei portuguesa. Persistem, por exemplo, alguns tribunais portugueses em não distinguir devidamente o que um texto de opinião de o que é uma notícia quando se debruçam sobre a liberdade de expressão. Tal distinção é essencial, uma vez que uma opinião não é verdadeira nem falsa contrariamente a uma notícia que se reporta a factos que serão verdadeiros ou falsos. A opinião deve ser, naturalmente, o mais irrestrita possível, sobretudo quando se apreciam os comportamentos de figuras públicas, nomeadamente figuras do poder. Mesmo que a opinião seja desagradável, contundente ou, mesmo, profundamente injusta. Essa é a forma de garantir que no “mercado das ideias” possam competir todos os “produtos”, mesmo os mais estapafúrdios e, até, ofensivos.

Infelizmente, alguns juízes portugueses, continuam a não fazer devidamente esta distinção e a não valorizar a liberdade de opinião, como, uma vez mais, o TEDH veio explicar na sua decisão da passada terça-feira. O caso reporta-se a um artigo de opinião publicado, em 2004, na revista Visão sobre o então primeiro-ministro, Pedro Santana Lopes e, já no livro “A Liberdade de Expressão em tribunal” que a Fundação Francisco Manuel dos Santos publicou em 2013, eu lamentara que, ao condenar o jornalista, o Supremo Tribunal de Justiça tivesse optado “pelos velhos preconceitos culturais contra a liberdade de expressão”.

O TEDH ao condenar, agora, Portugal a indemnizar a revista Visão, expôs, uma vez mais, o limitado entendimento da liberdade de expressão dos tribunais portugueses, sublinhando que no artigo em causa, o jornalista mais não fizera do que “asserções críticas sobre um assunto de interesse público” num artigo que se devia entender como de opinião. É realmente triste que uma parte dos juízes nacionais continue a apostar numa liberdade de expressão “à turca”.

Boas notícias – A publicação de dois livros de cabeceira: Direito de ofender, de Mick Hume, cujo título é esclarecedor; e De mal a pior, de Vasco Pulido Valente que reúne algumas das suas crónicas publicadas entre 1998 e 2015 – grande parte aqui no PÚBLICO – e que são, seguramente, o que de melhor se produziu, em termos de liberdade de opinião, no nosso país.

Advogado, francisco@teixeiradamota.pt

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