Novo regime de contratação de doutorados criticado por sindicatos e associações

Ministério da Ciência procura que instituições científicas façam contratos com os seus doutorados de longa duração, ao incluir essas contratações entre os factores que pesam na futura avaliação dos centros

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O uso de bolsas para a contratação tem sido banalizado pelas instituições científicas Adriano Miranda (arquivo)

A tão esperada lei sobre a contratação de doutores nas instituições de investigação científica foi finalmente publicada esta segunda-feira, em Diário da República, mas desiludiu os sindicatos e as associações que lidam com a precariedade no trabalho científico.

Estes grupos temem que a lei não altere o panorama de precariedade naquelas instituições – onde as bolsas de investigação substituíram muitos contratos de trabalho, impedindo milhares de pessoas de ter acesso aos deveres e direitos que parte da sociedade dá como garantido, como o pagamento de impostos e o subsídio de desemprego –, perdendo-se assim outra oportunidade de resolver um dos grandes problemas da política científica.

O ministro da Ciência e do Ensino Superior, Manuel Heitor, garante que a avaliação das instituições científicas também passará pela contratação dos doutorados. “Não haverá instituições com excelente ou muito bom se não tiverem em conta o regime de contratação”, disse esta terça-feira ao PÚBLICO o ministro, que quer iniciar uma nova avaliação aos centros de investigação do país já em 2017 que incluirá este factor, tentando assim estimular a “dignificação do trabalho científico”.

O Decreto-Lei n.º 57/2016, de 29 de Agosto, “adopta um regime jurídico de estímulo à contratação de investigadores doutorados, que visa reforçar o emprego científico bem como potenciar o impacto da investigação científica no ensino superior”, lê-se no documento, que adianta que “a realização de contratos para investigadores doutorados será feita de forma progressiva ao longo da legislatura”.

Os contratos são, no máximo, de seis anos. E depois? O desejo de Manuel Heitor é que este regime “dê lugar a uma carreira académica”. Segundo o ministro, serão contratados cerca de 3000 doutorados até 2020, parte deles directamente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) – em concursos anuais inseridos num programa de estímulo ao emprego científico. Outros poderão ser integrados em projectos de investigação científica que recebem financiamento da FCT ou de instituições europeias.

O ministro espera chegar aos “400 contratos de doutores” nos concursos anuais da FCT, onde a forma da avaliação vai mudar, e que se inicia já este ano. O novo decreto-lei substitui o regime do Investigador FCT, criado pelo governo anterior, de Pedro Passos Coelho, que atribuía a cientistas contratos de cinco anos em instituições científicas portuguesas. Para Manuel Heitor, a avaliação das candidaturas ao Investigador FCT baseava-se principalmente na quantidade de publicações científicas do candidato; no novo regime a base da avaliação vai ser mais diversificada.

Apesar de a nova lei não ter sido criada para pôr um ponto final no problema da carreira de investigação científica, há ainda assim desilusão. “A precariedade não foi resolvida”, diz ao PÚBLICO Gonçalo Leite Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup) e professor no Instituto Politécnico de Tomar.

O risco do bullying académico

Nos últimos meses, este e outros sindicatos e associações tiveram nas mãos a proposta deste decreto-lei e foram ouvidos pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior. Quando, em meados de Julho, o PÚBLICO esteve no encontro com cientistas no Instituto de Ciências Sociais (ICS), em Lisboa, onde Manuel Heitor foi questionado sobre a lei, o ambiente era de desconforto.

Na altura, criticava-se a proposta por não fazer uma ligação directa com a carreira de investigador da administração pública, e por estabelecer apenas contratos temporários e contratos a tempo incerto – em que a instituição podia pôr fim ao contrato quando quiser. Além disso, a tabela de remuneração, com limites mínimos e máximos amplos e com critérios de aplicação vagos, iria permitir à entidade empregadora pagar o menos possível.

Estas condições da proposta mantiveram-se no decreto-lei publicado agora. Desta forma, “muitos investigadores ficam sujeitos ao bullying académico”, considera Gonçalo Leite Velho, já que são as instituições que têm a faca e o queijo na mão.

Para já, a norma transitória do decreto-lei estabelece que as instituições “devem proceder à abertura de procedimentos concursais para a contratação de doutorados (…) que desempenham funções em instituições públicas há mais de três anos”. Cerca de 329 pessoas estarão nestas condições.

Para a Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), uma das preocupações deste decreto-lei é que “não revoga o estatuto de bolseiro”, diz ao PÚBLICO João Pedro Ferreira, da direcção da ABIC e aluno de doutoramento, que receia que as instituições mantenham a prática de contratação por bolsas.

Além de muitos investigadores viverem de bolsa em bolsa, nos últimos tempos este regime foi banalizado, ao aplicar-se ao trabalho de gestão e de comunicação de ciência, à área administrativa e até em trabalhos como o de electricista e pedreiro. “Estamos ansiosos por perceber se vai haver um conjunto de medidas complementares para, de alguma forma, a nova prática ser implementada”, diz João Pedro Ferreira.

Gonçalo Leite Velho não vai ficar parado: “Estamos a constituir uma plataforma [com outros sindicatos, organizações e investigadores] para trabalhar numa outra proposta legislativa sobre o emprego científico, que queremos apresentar aos partidos.”

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