Apple tem de pagar 13 mil milhões à Irlanda mas o “tigre celta” não quer

Em Portugal, a Autoridade Tributária também vai averiguar se haverá liquidação de impostos que deviam ter sido pagos no país

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A Apple, que tem a sede europeia na cidade irlandesa de Cork, diz que cumpriu a lei Josh Edelson/AFP

Ao declarar que a Irlanda infringiu as regras europeias de concorrência por decidir atribuir à Apple vantagens fiscais ilegais, a Comissão Europeia determinou nesta terça-feira a restituição de 13 mil milhões de euros ao fisco irlandês. Mas desengane-se quem esperaria ver o Governo irlandês regozijar-se por vir a encaixar uma receita de tão grande valor, conseguindo só com o resultado desta decisão de Bruxelas um valor equivalente a um quinto de toda a receita pública do Estado irlandês.

Apostado em não ferir a imagem do país como região atractiva para as multinacionais ali se instalarem e ali fazerem negócios, Dublin contesta a interpretação da Comissão Europeia, de que as decisões fiscais tomadas a favor da Apple configuram uma ajuda pública indevida, ao permitirem ao gigante americano pagar menos impostos e ficar em vantagem face a outras empresas.

O grupo liderado por Tim Cook, com a sede europeia na cidade de Cork, no sul da Irlanda, alega que cumpriu a lei e já anunciou que vai recorrer da decisão, contando com o apoio do Governo irlandês. A Casa Branca também reagiu, com o porta voz de Barack Obama, Josh Earnest, a mostrar-se preocupado “com uma abordagem unilateral que pode prejudicar os avanços alcançados em conjunto com os europeus para um sistema fiscal internacional justo”.

Por detrás da posição do Governo irlandês estão razões económicas que o ministro das Finanças, Michael Noonan, não escondeu, ao dizer que é necessário para garantir a integridade do sistema tribuário do país e não pôr em causa a estabilidade fiscal para o tecido empresarial.

Os 13 mil milhões representam mais de um quinto de toda a receita pública do país, que chegou aos 70,5 mil milhões de euros no ano passado. O valor supera mesmo o orçamento público do país com a saúde, notou a agência Bloomberg.

Mas a prioridade do Governo não passa pelo dinheiro envolvido neste caso. A Irlanda é conhecida pelo nível baixo de tributação dos lucros das empresas e por beneficiar da atracção de investimento estrangeiro pelas estratégias de planeamento fiscal que potencia para as empresas que ali se instalam. Para não pôr em causa uma estratégia que continua a dar frutos, e pesando os dois pratos da balança, os 13 mil milhões de receita a regularizar pela Apple não são vistos estritamente no plano orçamental pelo Governo de Enda Kenny. Além de que, ao aceitar sem contestação a decisão de Bruxelas, o executivo estaria politicamente a reconhecer que o Estado concedeu uma ajuda estatal ilegal, o que também poderia levantar precedentes em relação a eventuais casos semelhantes.

Um exportador de software

O “tigre celta”, como ficou conhecido o país pelo dinamismo económico antes da crise bater à porta com o resgate bancário da troika, é olhado como uma economia aberta muito voltada para os serviços e as indústrias de alta tecnologia, tendo no investimento e nas exportações de bens e serviços um pilar importante da sua actividade económica. A Irlanda é um dos maiores exportadores de software e serviços partilhados no mundo. É a 43.ª economia à escala global no ranking do Banco Mundial e, depois dos países da União Europeia, sobretudo o Reino Unido, tem nos Estados Unidos o seu principal parceiro comercial.

Do ponto de vista das regras europeias, Bruxelas considerou que a Irlanda concedeu uma ajuda estatal indevida por causa de duas decisões fiscais que permitiram à Apple beneficiar de uma redução artificial do imposto a pagar na Irlanda. As vantagens fiscais foram estabelecidas pelo Estado irlandês a duas sociedades do grupo sedeadas na Irlanda (de direito irlandês), a Apple Sales International e a Apple Operations Europe, através de decisões fiscais onde era definido o método de cálculo dos lucros tributáveis das empresas.

A investigação permitiu concluir que “quase todos os lucros de vendas registados pelas duas empresas eram atribuídos internamente a uma ‘sede social’”, embora elas não existissem senão no papel e não fossem geradoras desses resultados.

“Estes lucros atribuídos às 'sedes sociais' não estavam sujeitos a imposto em nenhum país ao abrigo de disposições específicas do direito fiscal irlandês, que deixaram de estar em vigor. Em resultado do método de atribuição autorizado nas decisões fiscais, a Apple apenas pagou uma taxa efectiva de imposto sobre as sociedades que baixou de 1% em 2003 para 0,005% em 2014 relativamente aos lucros da Apple Sales International”, explica a Comissão. 

Os incentivos que dão origem aos 13 mil milhões a pagar ao fisco irlandês referem-se ao período de 2003 a 2014, mas o caso começou alguns anos antes, quando em 1991 a Irlanda assina um primeiro acordo fiscal, depois substituído por uma segunda decisão em 2007. A investigação aberta pela Comissão em 2014 começou com um pedido de informações no ano anterior. E como o executivo comunitário pode determinar “a recuperação de um auxílio estatal ilegal para um período de dez anos anterior” a esse primeiro pedido, o cálculo do imposto a regularizar começa em 2003, mesmo que os acordos fiscais tenham começado anos antes.

Este não é o primeiro caso em que Bruxelas tem o mesmo entendimento por suspeitas de concessão de vantagens a multinacionais, trazendo de novo à ordem do dia um assunto que ganhou grande dimensão na opinião pública europeia com as revelações do caso LuxLeaks, relativo a acordos fiscais secretos celebrados entre o Luxemburgo e mais de 300 multinacionais entre 2002 e 2010.

A Apple, que em comunicado anunciou que vai recorrer da decisão de Bruxelas, alega que “cumpre a lei e paga os impostos devidos” na Irlanda e não poupa a Comissão Europeia de críticas, acusando-a de querer “reescrever a história da Apple na Europa”.

Portugal também investiga  

Entretanto, e tendo em conta a indicação de Bruxelas quanto à possibilidade de os países exigirem a correcção dos impostos sobre os lucros, o Governo português veio dizer ao início da noite, que vai averiguar se a decisão sobre a Apple pode “dar origem à liquidação de quaisquer impostos que devessem ter sido pagos em Portugal”, disse o Ministério das Finanças, citado pela Lusa.   

Perante esta decisão da Comissão Europeia, “o Governo português considera que este caso confirma a necessidade, que tem sido defendida por Portugal, de revisão da directiva juros e royalties da União Europeia que, na prática, limita os poderes de tributação dos Estados onde têm origem estes rendimentos, no sentido de essa limitação só acontecer quando exista tributação efetiva dos mesmos rendimentos no Estado de destino”.

De acordo com a nota do ministério liderado por Mário Centeno, “tal solução evitaria a prática de deslocação artificial (sem correspondente atividade económica da empresa) de rendimentos tributáveis para países com regime mais favorável”.

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