A cidade está cheia de faunos

É fácil perceber que o estilo de vida gay é um forte impulsionador do turismo

Como aconteceu nas últimas décadas em muitas outras cidades europeias, também zonas cada vez mais vastas do centro de Lisboa se tornaram territórios de um estilo de vida gay bastante visível (e, neste caso, a palavra “gay” é preferível a “homossexual”), às vezes maioritária, não em termos quantitativos, mas em termos de dominação. Uma primeira etapa neste percurso de conquista do centro da cidade foi a constituição de enclaves gays nas grandes metrópoles, onde se edificavam refúgios contra a discriminação. Foi desses enclaves e de outras formas de territorialização a que procederam os homossexuais, assumindo a sua condição minoritária, que teve origem a designação de “comunidade homossexual”, que soa hoje a uma relíquia do passado, contemporânea da reivindicação da homossexualidade como uma espécie de classe apta a ser integrada na luta política.

É fácil perceber que o estilo de vida gay é um forte impulsionador do turismo. Quando este estilo e o que o envolve – ou, pelo menos, aquilo que nele se conforma de maneira superlativa aos modelos do consumo, da flânerie e do entretenimento – se torna um fenómeno cultural do centro das grandes cidades, significa isso que se conquistou a harmonia clássica de uma Arcádia das orientações sexuais, equivalente ao fim da história? As coisas são muito mais complicadas e têm um passado que não podemos ignorar.

Uma etapa importante dessa história foi a luta pelo reconhecimento, em que os homossexuais, enquanto tal, se colocaram como sujeitos providos de existência e de direitos. Ficou célebre a palavra de ordem que soou em tempos recuados nos Estados Unidos: We’re queer, we’re here, so get fuckin’ used to it. Mas o aspecto pragmático da luta pelo reconhecimento nem sempre coincidiu (nem no tempo nem nos objectivos) com as elaborações teóricas mais sofisticadas, menos decalcadas de um marxismo vulgar da luta de classes. Evoquemos o exemplo do escritor francês Guy Hocquenghem, que morreu de sida em 1988, aos 41 anos, autor de Le Désir Homosexuel (1972) e de L’Après-Mai des Faunes (1974), com um prefácio de Gilles Deleuze, que foi a influência mais importante nos seus livros.

Hocquenghem deslocou a questão do reconhecimento, defendendo que a homossexualidade é apenas um nome, ainda que esse nome tenha que ser levado a sério. Defendendo o nominalismo da homossexualidade, ele pretendia que não há sujeitos homossexuais, mas antes produções homossexuais de desejo. Em vez de se fechar sobre “o mesmo”, a homossexualidade, assim entendida, deveria abrir-se a um leque de possíveis, recusando todo o fechamento da identidade.

Assim, o indivíduo faz da homossexualidade uma linha de fuga. A quem o caracteriza de modo essencialista, ele poderia responder: “Chamam-me homossexual, para me apreender, mas eu estou noutro lado, sempre noutro lado, em deriva, não há um ‘ser assim’ que eu tenha que reclamar”.

Neste sentido, a homossexualidade é um devir e não um estado. Evidentemente que esta é uma concepção utópica (Foucault contestou-a com fortes argumentos) e está na base da ideologia da libertação sexual dos anos 70 do século XX. Interessante é verificar que tendo passado por esta reivindicação utópica e atópica, não situável nem no centro nem nas margens, não servindo para identificar ninguém porque é um devir de todos, a homossexualidade topicalizou-se completamente, até chegar ao centro da cidade. Ganhou em eficácia de reconhecimento efectivo dos direitos civis. Se fosse uma arte, diríamos que perdeu, para o kitsch, as suas potencialidades. Em suma: democratizou-se.   

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