A França não viu Cameron de patka?

A argumentação dos juízes do tribunal administrativo de Nice em defesa da proibição do burkini é extraordinária. Vale a pena isolá-los, um a um. Os juízes começam por falar em “roupas adequadas”, uma proposta que abre portas à criação de interessantes manuais e discussões sobre calças de ganga rasgadas, mini-saias, fios dental ou sedas transparentes.

Falam a seguir no respeito pela “moralidade”. A moralidade assenta nas tradições e costumes e distingue as intenções, decisões e acções dos que praticam o bem e o mal. Não se compreende assim porque não ofende a moralidade dos cidadãos de Nice o uso do quipá, para não falar das estranhas roupas, chapéus e tranças dos judeus ortodoxos? Ou dos saris das mulheres indianas? Ou das barbas dos amish? Ou dos turbantes e dos patka que os sikh, “segurando” o longo cabelo no topo da cabeça? Foi isso, com certeza, que David Cameron quis demonstrar quando há uns meses visitou um templo sikh de patka cor-de-laranja na cabeça. No Reino Unido, aliás, há anos que as mulheres-polícia muçulmanas incluíram o hijab no uniforme oficial (com o pormenor de o lenço ter os quadrados pretos e brancos dos capacetes da Scotland Yard).

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Peter Macdiarmid/Reuters

O terceiro argumento é “respeitar o princípio da laicidade”. Isso implicaria no entanto que o critério da não-religiosidade se aplicasse a todas as religiões e não apenas a uma. Com esse argumento, cai também por terra o da necessidade de “assegurar a neutralidade do Estado”.

Os juízes de Nice defendem ainda que o burkini deve ser proibido para “respeitar as regras de higiene e de segurança”. Esta formulação é um clássico. Foi um dos argumentos usados há pouco tempo por uma escola no Texas para tentar obrigar um rapaz índio de seis anos a cortar o seu longo cabelo. Com a imposição, a escola queria “ensinar higiene, incutir disciplina, evitar distúrbios, evitar acidentes e afirmar autoridade”. O caso foi ao Supremo e a tese foi desfeita. Porque é que o cabelo apanhado numa trança e escondido dentro da roupa seria mais higiénico do que o cabelo solto ou duas tranças? E a preocupação da higiene não se aplica às raparigas de seis anos com cabelo comprido? E o perigo de “acidente” não existe para elas, apenas para eles?

Finalmente, os juízes de Nice acreditam que o uso de burkini pode ser “percebido como um desafio ou uma provocação”. Uma parte do mundo tenta aos poucos integrar as minorias e respeitar os seus costumes de modo a evitar guetos e marginalização. Vimos isso nos Jogos Olímpicos do Rio, quando o comité permitiu, pela primeira vez, que o uniforme das competições de vólei de praia pudesse incluir mais roupa para além das cuecas e do sutiã desportivo.

Vimos isso esta semana, com a Escócia e o Canadá a integrarem o hijab no uniforme das mulheres-polícia. Não sentem que esse gesto possa ser uma "provocação", como receiam os juízes de Nice. Acreditam, pelo contrário, que cria melhores relações nas suas comunidades e, não resolvendo todos os problemas, resolve alguns e não cria nenhum novo.

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