E o anfiteatro preencheu-se de gente logo à primeira noite

Os “novos” Unknown Mortal Orchestra conquistaram a multidão, os Orelha Negra aqueceram-na, os Best Youth embalaram-na. O Vodafone Paredes de Coura acolheu uma multidão logo no arranque.

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Ruban Nielson, dos Unknown Mortal Orchestra, teve de defender o seu boné da multidão PAULO PIMENTA
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Os Unknown Mortal Orchestra da primeira aparição em Paredes de Coura, há três anos, eram um power trio; agora são quatro PAULO PIMENTA
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André Tentúgal anunciou inesperadamente o fim dos We Trust durante o concerto que abriu o festival PAULO PIMENTA
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Os Best Youth são jogo de sedução, olhos nos olhos, entre Ed Rocha Gonçalves e Catarina Salinas PAULO PIMENTA
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Rachel Goswell, dos Minor Victories PAULO PIMENTA
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Uma máquina em concerto: os Orelha Negra PAULO PIMENTA

Que tumulto é aquele ali em baixo, enquanto João Gomes exibe elegância em piano Rhodes, Francisco Rebelo balança no groove irreprensível das quatro cordas do baixo, Fred Ferreira ataca as peles com a alma toda posta no momento, Sam The Kid corta e cola e reconstrói memória em novas combinações na MPC e DJ Cruzfader deixa o scratch falar sobre toda a música criada? Que tumulto é aquele de corpos chocando entre si num círculo formado entre a multidão das primeiras filas? De miúdos que caem nos braços dos seguranças no fosso que separa plateia e palco, observados pelos que, mais acima, ouvem a música concentrados no som, sem movimento, e os que erguem os braços e dançam e cantam o que reconhecem das canções com mil músicas que brotam do palco?

O tumulto dos miúdos em roda-viva é o Vodafone Paredes de Coura das emoções extravasadas com a música que se ouve naquele magnífico anfiteatro natural. Tal como o são os que ouvem sem movimento e os que dançam o que os Orelha Negra (eram eles que tocavam) lhes apresentam. Tal como o é a comunhão entre público e banda testemunhada quando Ruban Nielson, dos Unknown Mortal Orchestra, se deixa  cair sobre os braços que o fazem depois navegar sobre a multidão (outros braços, menos comunais, tentam deitar a mão ao boné que o vocalista e guitarrista defenderá como pode). Também é Vodafone Paredes de Coura o momento seguinte, quando Ruban confessa que “gosta mesmo de Portugal”. Como ainda estamos todos imbuídos do espírito de campeões europeus, logo irrompem cânticos futebolísticos (“Portugal allez!”) que se silenciam por breves momentos antes de nova erupção de aplausos. “Que é que se passa?”, pergunta Ruban. Pobre ingénuo. Não se estava mesmo a ver que o silêncio e os aplausos que se lhe seguiram foram causados pela aparição de um SpongeBob insuflável a que fora acoplado o rosto de Eder, o herói de todos nós? Este humor pop absurdista, chamemos-lhe assim, também faz parte do Vodafone Paredes de Coura que começou oficialmente esta quarta-feira.

Paredes de Coura – Que comece a festa

Quinta-feira será o primeiro dia em funcionamento pleno do recinto, com os dois palcos em actividade e concertos alternando a partir das 18h. O dia em que teremos direito a uma sequência imbatível: como resistir a uma noite com Sleaford Mods, Algiers, Thee Oh Sees e LCD Soundsystem, depois de um final de tarde com Ryley Walker e Whitney? Teoricamente, será o dia da enchente. Na prática, enchente é o que já temos.

Durante a tarde, na zona nobre do campismo, a do bosque onde tudo é sombra, entre os pequenos bairros de tendas formados, entre o som de alguém que oferecia aos amigos a sua versão acústica de I will survive, o som de outros que punham a rodar bem alto os velhos Smashing Pumpkins, e o olhar espantado dos que acabavam de chegar e caminhavam, olhando para a esquerda, virando-se para a direita, pensando “onde raio vou eu montar a tenda?”, parávamos e admirávamos a elevação coberta de arvoredo que vemos magnificamente iluminada à noite, por trás do palco principal. Até lá muito acima, em cada espaço uma tenda espreitando entre o verde. No rio Coura, por sua vez, o dia que nascera fresco podia impedir a maioria de experimentar um mergulho, mas nada impedia os (muitos) barcos de borracha de navegar as águas.

Relvado nas margens do rio repleto, campismo ao sol reproduzindo o mesmo cenário do montado na sombra, gente deitada a ler, a beber, a lançar malabares, a usar o gradeamento do recinto como rede de vólei, a bronzear-se na relva artifical fronteira à renovada zona de chuveiros. Muita gente. É como escrevemos, enchente já temos.

Madrugada dentro

É um cenário bonito. A noite já caiu e os We Trust já nos proporcionaram um momento comovente, quando à orquestra de Paredes de Coura que os acompanhou se junta um coro infantil de dezenas de crianças que cantarão, muito convictas, a frase refrão “the future starts today, future starts to-da-ay”. Antes, os We Trust de André Tentúgal, orquestrações à George Martin caindo sobre aquela mistura de pop, escola britânica, aprumo estético observado nos Air e subtexto dançável sempre presente, tinham-nos surpreendido quando, a meio do concerto que inaugurou o palco principal do Vodafone Paredes de Coura, anunciaram inesperadamente o fim da banda que nos ofereceu Time (better not stop). Uma hora depois, o futuro estava a começar.

Os Best Youth de Ed Rocha Gonçalves e Catarina Salinas, acompanhados por Fernando Sousa, o baixista dos X-Wife, que também integrara pouco antes a banda de palco dos We Trust, e pelo baterista Nuno Sarafa, também ele um X-Wife, têm perante si uma vasta plateia que ocupa sentada todo o anfiteatro. Acompanha canções onde sensualidade e melancolia se unem numa synth-pop feita de sombras nocturnas. Hang out, a canção que primeiro lhes deu protagonismo, deixou de ser “a” canção: é uma mais num conjunto tanto mais eficaz (musical e emocionalmente) quando se constrói com menos. Dois sintetizadores em camada ambiental, o calor da bateria e a expressividade contida da voz de Salinas são ideais para a viagem, para o jogo de sedução, olhos nos olhos, microfone partilhado, encenado por Ed e Catarina. Viagem, ou seja, capacidade de nos transportar, que não tiveram os Minor Victories.

Diz o cliché que superbandas dão sempre mau resultado (e apresentam-se os Asia como prova A). O cliché, em Paredes de Coura, revelou-se verdadeiro. Os resultados estão longe de ser catastróficos, como no caso dos Asia, mas a verdade é que a reunião da vocalista dos Slowdive (Rachel Goswell) com dois Mogwai (Stuart Braithwaite e Martin Bulloch) e um Editors (Justin Lockey), sendo shoegaze que desagua em turbilhão eléctrico pós-rock, ou seja, exactamente o que a combinação dos seus elementos sugere, não resulta em canções de corpo inteiro, como as dos Slowdive  e para turbilhão a sério já existem os Mogwai. Os Minor Victories ficam a meio caminho, numa pouco aprazível terra de ninguém.

Mas para testemunharmos como se procede a uma verdadeira síntese transformadora tivemos o concerto dos Unknown Mortal Orchestra. Quando primeiro os vimos em Paredes de Coura, eram o power trio que carregava o psicadelismo lo-fi de II, o segundo álbum, com a voltagem eléctrica da Jimi Hendrix Experience. Agora, editado o Multi-Love em que se voltaram para um funk à Sly Stone, actualizado à tecnologia do século XXI, são toda uma outra banda. O público de Paredes de Coura aprecia os Unknown Mortal Orchestra de ontem e os de hoje. Aliás, aprecia a forma como essas duas existências se misturam numa só.

O baixista que acompanha o líder Ruban Nielson é o mesmo, Jacob Portrait. Com os dois, o baterista Amber Baker e o teclista Quincy McCrary. E é esta nova banda que leva So good at being in trouble, uma das mais aplaudidas da noite e outrora sob o efeito de John Lennon, pelos caminhos do funk sintético de Prince. É ela que abre espaço, em The world is crowded ou na muito celebrada Multi-love, para o improviso, qual jazz de fusão que não se arma ao pingarelho, qual psicadelismo de olhos no cosmos, qual pianada blues irrompendo num juke joint de madrugada. Ruban Nielson, sentado no chão, dobrado sobre a guitarra, a deixar-se levar pelo momento, surgiu como anti-estrela rock, enfiado num sobretudo e de boné na cabeça, como que fusão de personagem secundário das ruas de Baltimore, em The Wire, e detective fora-da-lei da Balada de Hill Street. Saiu de palco, já sem o sobretudo, mas com boné ainda na sua posse, como homem justamente celebrado.

A madrugada avançava. Acentuava-se um frio inesperado para o Agosto que nos tem calhado em sorte. Mas nada havia a temer. Tinham chegado os Orelha Negra. Com eles, não há frio que resista. O terceiro álbum está para chegar e aguardamo-lo ansiosamente. Mas arriscamos dizer que a experiência de estúdio não suplanta a máquina que são em concerto. Híbrido magnífico, levam a arte do sampling às últimas consequências. Ou seja, utilizam os excertos sonoros como memória, como homenagem, como matéria criativa – de Otis Redding a Mind da Gap, de Drake a Kendrick Lamar , e transformam-na, transportando-a para o mundo que erigem de forma orgânica: são banda em movimento capaz de viagem cósmica, de funk robusto, de soul blaxploitation, de excitação de concerto rock, ou de concerto hip-hop, tudo isso e nada disso exactamente. Lá em cima no palco, um turbilhão de ideias. Cá em baixo na plateia, o tal tumulto, a dança, o olhar atento, o primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura já tão cheio de gente a chegar ao fim. 

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