O futuro perfeito dos cineastas do presente

A competição secundária de Locarno é um pequeno laboratório formal dedicado à revelação de jovens cineastas.

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Viejo Calavera, do boliviano Kiro Russo, desce às minas de Huanuni DR

Locarno distingue-se de outros festivais de “primeira categoria” por arriscar subir à competição principal filmes como From What Is Before, de Lav Diaz (vencedor do Leopardo de Ouro há dois anos), ou Correspondências, de Rita Azevedo Gomes, este ano – obras cuja dimensão experimental ou origem menos consensual lhes “fechariam a porta” no concurso de outros festivais. Mas o verdadeiro “laboratório formal” do certame suíço é a paralela competitiva Cineasti del Presente, reservada a primeiras e segundas longas, onde este ano houve uma co-produção portuguesa que estará certamente no radar do júri presidido por Dario Argento: El Auge del Humano, do argentino Eduardo Williams, que recebeu algumas das melhores críticas da edição que agora chega ao fim.

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El Auge del Humano, de Eduardo Williams DR

Cruzando três histórias ambientadas na Argentina, nas Filipinas e em Moçambique, o filme de Williams é exemplar da aposta do Cineasti del Presente nos cineastas “do futuro”. E, não por acaso, um dos melhores títulos deste concurso (e de todo o festival) tem tudo a ver com o futuro. El Futuro Perfecto, primeira longa a solo da alemã radicada na Argentina Nele Wohlatz, é uma deliciosa e enganadoramente simples exploração dos laços entre a linguagem e a ficção, através da história de uma jovem chinesa recém-chegada a Buenos Aires cuja aprendizagem do castelhano começa a moldar a sua visão do futuro. O domínio desta segunda língua equivale para Xiangbin ao domínio da sua própria vida, e Wohlatz explora com grande humor, ternura e desarmante simplicidade as regras rígidas do ensino de línguas para mostrar como estamos constantemente a navegar e a contornar regras no nosso dia-a-dia.

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El Futuro Perfecto, de Nele Wohlatz DR

O que torna El Futuro Perfecto ainda mais digno de nota é o modo como o filme, ficção inspirada em e alimentada pelas experiências de vida da sua heroína Xiaobin Zhang e da própria realizadora, se inscreve com elegância no território fluido da “não-ficção” e dos “cinemas do real” cruzando estratégias ficcionais e inspirações documentais. Outro bom exemplo dessa corda bamba, igualmente oriundo da América Latina, é a primeira longa do boliviano Kiro Russo (já por duas vezes premiado no IndieLisboa em formato curto, em 2012 e em 2016), Viejo Calavera. Esta história de um jovem delinquente alcoólico que nem o emprego de mineiro consegue resgatar da irresponsabilidade conjuga uma trama ficcionada interpretada por actores não-profissionais e uma rodagem nas minas de Huanuni que contou com o apoio do sindicato local. Russo e a sua equipa reduzida criam com tuta e meia uma experiência audiovisual literalmente de cortar a respiração (fotografia de Pablo Paniagua, som de Gilmar Gonzáles) a espaços gémea do Eldorado XXI de Salomé Lamas, embora aqui haja por vezes um excessivo comprazimento na sua extraordinária criação estética.

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The Challenge, de Yuri Ancarani DR

A estética visual é a mesma armadilha que o italiano Yuri Ancarani ronda com The Challenge, mergulho na tradição de falcoaria da Arábia Saudita que acaba por ser muito mais um retrato das mutações contemporâneas trazidas pelo dinheiro do petróleo. Entre Lamborghinis, corridas de 4x4 ou monovolumes nas dunas, viagens de Harley-Davidson pelo deserto e leilões televisionados em tempo real, a simplicidade ancestral da relação entre ave e falcoeiro, o mero acto físico e intemporal da caça, parece passar para segundo plano, para trás dos sinais exteriores de riqueza. O deslumbre de Ancarani por este requinte luxuoso é genuíno ou subversivo? O filme não lhe responde cabalmente, mas enquanto procura a resposta enche-nos os olhos com as suas extraordinárias imagens de cores puxadas ao limite, a um tempo registo documental cuidado de uma realidade que nos é estranha e projecção de sonhos e ambições das Mil e Uma Noites. É filme que poderá agradar ao esteta da cor e do excesso que é Dario Argento, autor de Suspiria ou Profondo Rosso. Mas não nos surpreenderíamos de ver qualquer destes três títulos no palmarés dos Cineasti del Presente.

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