A tentação populista

O imediatismo e a urgência que hoje dominam a exigência da vida pública não podem transformar a ética pública numa sanha demagógica e populista.

O primeiro-ministro, António Costa, decidiu que o Ministério da Defesa devolvesse ao Presidente da República o cheque que Marcelo Rebelo de Sousa enviara ao Governo para pagar a viagem que fez num avião da Força Aérea, um Falcon, de Bragança para Lyon para assistir à meia-final do Campeonato da Europa de Futebol que opôs a selecção portuguesa à selecção do País de Gales em 6 de Julho. A atitude do primeiro-ministro é, segundo o Correio da Manhã, escudada oficialmente no parecer jurídico que diz tratar-se de “um acto de representação do Estado português”.

A notícia foi olhada como um fait-divers de Verão, sem grandeza de noticiário político, portanto. Mas esta atitude de Costa levanta uma questão que é de importância maior. Não pela definição de que o Presidente da República representa o país onde quer que se desloque, pois tal é do mais elementar conhecimento público. O Presidente é o primeiro órgão de soberania e o mais alto dignitário do país, quer veja um jogo de futebol, quer acorra à população que vive a tragédia de ver a suas vidas consumidas pelo fogo que devastou o Funchal. Em ambas as situações, glória e tragédia, cabe ao Presidente estar presente.

O que é relevante nesta atitude do primeiro-ministro é o facto de proporcionar a Marcelo Rebelo de Sousa a oportunidade de travar um comportamento indevido, pois assume contornos claramente populistas. Recordemos. Perante uma notícia que explorava em estilo tablóide os custos que tinha para o Estado a deslocação do Falcon entre Bragança e Lyon, o Presidente da República caiu na ratoeira e tratou de diligentemente anunciar que iria pagar do seu bolso a deslocação para ir ao futebol, como se o facto de ter ido a Lyon para ver o jogo o fizesse despir o seu papel de primeiro dignitário do Estado português.

A importância de António Costa pôr travão ao deslize populista de Marcelo Rebelo de Sousa é imensa, pois assim ajuda a que se feche a caixa de Pandora que o gesto do Presidente poderia ter aberto. Isto, porque a questão que se colocaria em seguida seria a de saber qual o limite e qual o critério que iria no futuro determinar que viagens seriam feitas em representação oficial e por isso pagas pelo Estado e o que seriam as deslocações do Presidente, como primeiro representante do Estado português, mas pagas do seu bolso. Esta atitude surgiu como uma aparentemente irreflectida decisão tomada pelo Presidente quando pressionado pelas perguntas do Correio da Manhã. Desejamos que assim tenha sido, embora seja difícil acreditar que um político com a sua experiência se deixe condicionar e aja de modo irreflectido só porque é questionado por um jornal.

Há um padrão anterior de comportamento por parte de Marcelo que revela o seu extremo cuidado com as suas despesas e com a justificação de gastos. Isso foi visível durante a campanha eleitoral, e foi já publicitado após a posse, nomeadamente com a auditoria às contas da Presidência que decretou, mas também é visível na frugalidade com que organiza as suas deslocações.

É importante que um presidente seja senhor de um comportamento irrepreensível e em nada choca que use mesmo de um rigor espartano na gestão dos seus actos. Como referência para o país que inegavelmente é, a sua acção pode e deve ser um farol que ilumina a vida pública. E é importante não só porque vivemos numa época de crise em que se sofrem ainda as consequências do ajustamento que reduziu substancialmente o nível de vida de uma percentagem substancial dos portugueses. O comportamento de rigor das contas e de seriedade nos gastos devem ser constantes de qualquer governante, logo por maioria de razão da primeira figura do Estado.

Agora para que seja essa referência impoluta é preciso que o Presidente tenha consciência que vivemos no século XXI, numa sociedade de consumo massificada, em que a implosão do espaço e do tempo foi feita pela vida em rede que a Internet trouxe — ou seja, um mundo em que não é possível o regresso a românticas e nostálgicas lembranças como a do primeiro Presidente da República, Teófilo Braga, a deslocar-se de eléctrico para a Assembleia da República.

Mas o imediatismo e a urgência que hoje dominam a exigência da vida pública não podem transformar a ética pública numa sanha demagógica e populista, segundo a qual um presidente seria mais sério, mais impoluto, mais puro, se não custasse dinheiro ao Estado. É bom que todos os que prezam e cuidam a democracia tenham noção de que a representação pública e que a gestão do Estado tem custos. E que aqueles que representam os portugueses e que gerem os Estado têm despesas inerentes ao cargo que são gastos a bem da vida democrática. Daí que seja importante que Marcelo não hesite na ética com que exerce a função de Presidente da República, mas também que não se deixe cair em ratoeiras demagógicas e populistas.

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