Um riso desesperado

George Saunders chega finalmente a Portugal com um livro que é uma amostra da criatividade e sentido crítico em relação ao tempo presente. Dez de Dezembro é a obra de um mestre do conto.

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George Saunders: o absurdo humano do presente foto: David Levenson

George Saunders (Texas, 1958) é uma das vozes mais originais e talentosas da literatura americana. Com oito livros de ficção publicados - novelas e contos - este professor de escrita na universidade de Syracuse, Nova Iorque, tem um especial talento em detectar e depois transportar o sentido do absurdo para uma escrita de enorme inventividade. É o absurdo humano do presente.

Premiado, elogiado pela crítica, considerado um mestre de estilo, admirado pelos pares - David Foster Wallace considerava-o um dos escritores mais estimulantes e, Lorrie Moore, único -, George Saunders não estava até agora publicado em Portugal. Uma ausência só explicada, talvez, pelo facto de ser sobretudo um contista (é velha a resistência portuguesa a contos) que trabalha a realidade para a devolver distorcida, aparentemente ingénua no seu caos e com um humor que não é de gargalhada aberta, mas incómodo, desesperado, a apontar para o lado mais negro. Ou seja, Saunders não é fácil e escreve contos, por isso só agora o temos em português, graças a uma editora nova e pequena que decidiu correr o risco de o publicar.

E não com aquele que é até agora o seu livro mais consagrado, Pastoralia (2000), a história de um homem que vive numa cave de um parque temático com um fax, sátira tão mordaz quanto emotiva sobre o presente. Chega com Dez e Dezembro, um volume de contos que lhe valeu o prémio Folio em 2014, na sua única edição. O Folio anunciava-se como alternativa ao Man Booker Prize, tentando restabelecer o pestígio e a qualidade que alegadamente o prémio teria vindo a perder ao longo do tempo ao distinguir uma obra em língua inglesa. O livro de Saunders foi o eleito, mas a fundação que o atribuía não teve suporte financeiro para mais.

Num entrevista ao New York Times, em 2013, Saunders considerou Dez de Dezembro o seu livro mais “expansivo” com uma escrita capaz de chegar a mais leitores, apesar de não haver concessões estilísticas. Tudo se passa quase sempre numa realidade fantasiosa, espécie de semi-consciência que permite ancorar toda a invenção. No conto que dá título ao livro - o último do volume - um rapaz prepara-se para ir com uma pressão de ar a um lago “inspeccionar” um dique de castores e acha que os Subs, “criaturas do Submundo”, uma “espécie que vivia no velho muro de pedra”, tentarão detê-lo. A pressão de ar serve para os afugentar. “Para os Subs era problemático detê-lo. Ele era astuto. Além de que não cabia na abertura do muro de pedra. Quando o atavam com cordas e iam lá dentro fazer a poção especial de encolhimento - Zás! - ele partia as cordas antiquadas com um movimento do sistema de artes marciais de sua própria invenção, Toi Foi, também conhecido como Antebraços Letais. E colocava na entrada deles uma implacável pedra de sufocação, prendedo-os lá dentro.” Mas como Saunders, o rapaz detecta o mal, combate-o, só que se apieda dos malfeitores.

É esse sentido de compaixão que impede que o universo de Saunders, marcado pela crítica a aspectos da sociedade contemporânea como o consumo, a exposição pública, a vacuidade de discursos na arte e nos media, culto da fama (como em Al Roosten, um dos contos de Dez de Dezembro) ou a fragilidade de instituições sociais, seja totalmente negro. Há sarcasmo, ironia, sátira e uma qualquer redenção que volta a colocar peças humanas no que estava a ser desumanizado no texto. “O mais chato é que nunca se conseguia salva mesmo alguém. No Verão passado, encontrara um guaxinim moribundo na floresta. Pensara em levá-lo para casa e pedir à mãe que chamasse o vetirinário. Mas, ao aproximar-se, teve muito medo. Porque os guaxinins são na realidade maiores do que parecem nos desenhos animados. E este parecia querer morder. Por isso, foi a correr até casa ao menos a buscar alguma água. Quando regressou, viu que o guaxinim aparentemente destruíra algumas coisas num último estertor. O que era triste. Ele não lidava bem com a tristeza. Talvez tivesse chorado um bocadinho, na floresta.”

A história do rapaz cruza-se com a de um homem a morrer de cancro, mete um discurso nacional sobre compaixão, considerações sobre beleza, a religião, a morte no que é um exemplo da escrita apurada e nada convencional de Saunders, tantas vezes apelidada de futurista, alegadamente por desafiar convenções do seu tempo, embora seja esse tempo presente o material que a alimenta e a frieza não seja senão aparente. A inspiração foi o pós-modernismo, mas Saunders também quia ser Hemingway, como chegou a confessar, e acabou fazer dessa contradição uma base, foi ao pós-modernismo mas adaptou-o ao que queria fazer: uma escrita com alguma moral sobre o que “nos” preocupa ou perturba. Desde a morte ao cheiro das roupa que alguém regista num diário (como em Diários das Raparigas Semplica, o sétimo conto). E uma atenção ao íntimo, profunda. Que tenta comunicar através da invenção de novos modos de discursos adatados ao subconsciente ou simplesmente desmontando modos de estar numa economia palavras que não é de emoções. A escrita, em Saunders, não é apenas fria, cerebral. Leia-se A Casa. “Lá estava a minha mãe, cabeça entre as mãos, a remexer nos montes de ralha. Era ao mesmo tempo melodramático e não melodramático. Por outras palavras, quando a minha mãe sente qualquer coia profundamente, é isso que ela faz: melodrama. o que faz com que o melodrama não seja melodrama, suponho.”

A escrita de George Saunders tem um compromisso: o que este tempo lhe sugere. Ele reage desmontando-o, criticando com personagens mais ou menos humanas, um presente moldado pelo capitalismo que despreza. A frieza ou ideia de técnica não vem de dentro, é dada por um exterior que a sua escrita tenta filtrar.

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