Ilhas Selvagens: Marcelo mata a curiosidade e Portugal marca o terreno

O Presidente da República visita no final do mês o ponto mais meridional do país. É o quarto chefe de Estado a desembarcar nas Selvagens, umas pequenas ilhas do Atlântico com um enorme interesse geoestratégico.

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As Selvagens são objecto de uma disputa entre Portugal e Espanha que remonta ao século XV Carlos Lopes/Arquivo

Quando, no final de Junho, acabado de aterrar na Madeira, Marcelo Rebelo de Sousa disse que pretendia voltar para visitar as Ilhas Selvagens, fez questão de expurgar do anúncio dessa visita qualquer significado diplomático, rejeitando haver qualquer necessidade de manifestação de soberania sobre aquele arquipélago, que é o ponto mais meridional do país.

“É uma visita que sempre quis fazer como cidadão e que, como Presidente da República, quero cumprir”, justificou então aos jornalistas, rejeitando que a deslocação às Selvagens, a quarta a efectuar por um chefe de Estado, tenha como pano de fundo o diferendo entre Portugal e Espanha sobre a classificação daquele conjunto de ilhas. “Não há nenhuma premência de natureza jurídica ou política, é a premência da curiosidade”, insistiu a propósito da visita.

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Mas a viagem de Marcelo à Madeira, a segunda desde que chegou a Belém, não será assim tão inocente, tal como não foram as anteriores visitas às Ilhas Selvagens de Mário Soares (1991), Jorge Sampaio (2003) e Cavaco Silva (2013).

Localizadas a 82 milhas a norte do arquipélago das Canárias e a 163 milhas a sul da ilha da Madeira, as Selvagens são objecto de uma disputa entre Portugal e Espanha que remonta ao século XV, mas que se agudizou já neste século, quando a questão do alargamento da plataforma continental foi colocada.

Em causa, não está a propriedade daquele arquipélago, que os espanhóis reconheceram, em 1938, pertencer a Portugal, mas sim a classificação jurídico-geográfica das ilhas. Madrid argumenta que não são habitadas nem têm actividade económica, e que, como tal, de acordo com o Direito Marítimo, devem ser consideradas rochedos – o que pode influenciar as pretensões de Portugal de alargar naquela região a sua plataforma continental até às 350 milhas.

A pretensão portuguesa de extensão da plataforma continental colide com a espanhola, exactamente numa parte daquela zona, a oeste das Selvagens, segundo os projectos de extensão das respectivas plataformas continentais submetidos por Portugal e Espanha às Nações Unidas. Espanha pretende prolongar o domínio marítimo 150 milhas além da Zona Económica Exclusiva (ZEE) das Canárias, o que entra na plataforma continental reclamada por Lisboa (ver infografia).

Depois de vários episódios no final do século XX envolvendo voos a baixa altitude de caças da Força Aérea Espanhola e a simulação de aterragem de um helicóptero militar na Selvagem Grande, que motivaram a chamada do embaixador espanhol ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e o consequente pedido de desculpas de Madrid, o diferendo sobre as Ilhas Selvagens passou para o plano diplomático.

Em Julho de 2013, numa reacção à visita de Cavaco Silva ao arquipélago, a Missão Permanente de Espanha junto das Nações Unidas, entregou uma nota na Divisão de Assuntos Oceânicos e Direito do Mar, na qual reiterou que as Selvagens devem ser classificadas como rochedos, que, como tal, não podem ser geradores de ZEE.

O documento, que só foi tornado público mais de um mês depois, defende que, como rochedos, as Selvagens apenas têm direito a mar territorial (12 milhas), o que implicaria a redução do domínio marítimo nacional da ZEE em torno daquele arquipélago de 41 milhas (metade da distância entre as Selvagens e as Canárias) para 12 milhas.

É uma visão rejeitada por Lisboa. O principal argumento português é o de que as ilhas, que são uma Reserva Natural desde 1971, são habitadas permanentemente por pelo menos dois vigilantes da natureza, que são rendidos a cada 15 dias. E esta população deve mais do que duplicar já este mês, com a colocação, em permanência, de dois agentes da Polícia Marítima e de um elemento da Capitania do Funchal.

O objectivo é instalar um posto permanente da Polícia Marítima e uma extensão da Capitania que irá permitir que sejam registadas embarcações e emitidas licenças nas Selvagens. Também aqui o esforço nacional não é inocente, porque, ao gerar actividade económica naquelas ilhas, Portugal fragiliza os argumentos espanhóis sobre a classificação das Selvagens.

Além de duplicar a população, o Estado vai também reforçar os meios técnicos no arquipélago. Serão ali instalados um radar do sistema Costa Segura, com alcance de 24 milhas, e duas lanchas rápidas que vão permitir a fiscalização do mar em volta das Selvagens e garantir a rendição dos dois polícias marítimos e do elemento da Marinha.

“É nosso objectivo deixar bem claro que aquelas ilhas têm condições de habitabilidade, têm condições para o desenvolvimento de actividades económicas e o reforço da presença do Estado melhora as condições para o exercício da autoridade do Estado”, afirmou, em Junho passado, no Funchal, o secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello.

Será esta nova realidade que Marcelo Rebelo de Sousa vai encontrar nas Selvagens. A visita, que passará também pelas ilhas Desertas, localizadas ao largo da Madeira, está agendada para os dias 28, 29 e 30 de Agosto.

Com uma área aproximada de quatro quilómetros quadrados, as Selvagens são formadas por três ilhas: Selvagem Grande, Selvagem Pequena e Ilhéu de Fora. Sem água potável nem recursos naturais, as ilhas são consideradas um pólo de biodiversidade marinha e terrestre, integrando os Sítios de Importância Comunitária da Rede Natura 2000.

Além do interesse científico – duas das ilhas são consideradas santuários –, a importância geoestratégica deste arquipélago perdido no Atlântico aumentou quando se colocou a questão da extensão da plataforma continental.

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