A difícil sobrevivência de uma minoria sem Estado no Médio Oriente

A médio prazo, vai haver uma solução para os curdos da Turquia, um destino necessariamente ligado ao dos curdos da Síria. Erdogan está terça-feira em Moscovo e o futuro do Curdistão e do maior povo sem Estado também passa por aí.

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Uma parede do bairro de Sur, em Diyarbakir, em Outubro; o bairro foi depois completamente demolido Stoyan Nenov/Reuters

Murad Akincilar fala dos curdos como “eles” e das pessoas de Diyarbakir como “nós”. Fizessem todos os turcos o exercício de viver uma temporada nesta cidade e o presente e o futuro dos curdos estaria certamente mais bem encaminhado. Akincilar mudou-se para cá há cinco anos com a mulher e a filha – ele fala disso com naturalidade, mas foi uma decisão corajosa. Afinal, tinha acabado de passar dez meses nas cadeias turcas por defender uma plataforma política turca e curda, democrática e de esquerda.

Entre a vida que Akincilar levava em Istambul, onde sempre viveu, tirando os anos em Genebra, e a que tem aqui, a quase 1500 quilómetros de distância para Sudeste, há um mundo de distância e até podia haver uma galáxia de intervalo. O mundo de Diyarbakir é menos amplo, o que se vê daqui são estradas e campos e montanhas. Se se andar para Sul, a Síria, não é a Europa que se avista.

Não é só isso. Diyarbakir é pobre, suja, escura, quente. Quem arriscar perder-se, numa noite destas depois de um dia com mais de 40 graus, tanto pode acabar num labirinto de ruelas estreitas com lixo e gatos esquálidos onde a única luz virá dos reflexos nas poças de água como deparar-se com a mais bela das mesquitas, pátio amplo, o desenho a lembrar a Omíada de Damasco, mas de cal branco intercalado com basalto negro. Ou então, descobrir na escuridão um magnífico pátio otomano, dois andares de varandas com cafés, lojas e esplanadas ao nível do chão.

Numa sexta-feira à noite, quem queira distrair-se terá cafés ou os relvados em redor das muralhas da Cidade Velha para se sentar, uma banca de gelados por perto, as que grelham fígado de cordeiro aqui e ali, as estrelas como tecto. Melancia para refrescar, são enormes e, com as muralhas, o símbolo da cidade (crescem nas margens do Tigre); o melão ainda é mais especial. É bom, é só isto, nos melhores dias.

“Para uma minoria sem Estado, pessoas cuja existência é negada, cuja presença é negada, sobreviver no Médio Oriente é muito difícil”, diz o académico, coordenador do Instituto para os Estudos Políticos e Sociais de Diyarbakir. É. Mas os curdos já cá estavam há muito tempo e daqui ninguém os vai expulsar. Mesmo que a sua História seja feita em ruínas, como no Outono do passado, quando o Exército turco destruiu parte da Cidade Velha, “não há nada para salvar” dizem agora os arqueólogos, voz embargada, menos de um ano depois da zona destruída ter sido classificada pela UNESCO.

Mesmo que lhes roubem as provas do passado para lhes anular o futuro. A língua ainda resiste, mesmo se foi tanto tempo proibida. A vida também.

Agora que o partido no poder na Turquia decidiu impor o estado de emergência a todo o país, na sequência do golpe de Estado fracassado de 15 de Julho, convém lembrar que no Sudeste do país há milhões a viver em estado de guerra desde que têm memória. Afinal, como recorda Akincilar, um doce de homem que se emociona quando descreve alguns pormenores do que por aqui tem observado, mas não contém o riso face às (e são tantas) pequenas ironias da História, os curdos nunca viveram de outra forma.

“Imposição de estabilidade”

“Desde 1924 esta região é administrada por leis excepcionais, o nome da lei, em 1924, era Imposição de Estabilidade [risos]”, diz. Ou seja, “exceptuando períodos muito curtos aqui sempre se viveu com recolher obrigatório, leis excepcionais, estado de sítio ou declaração de zonas militares”.

Ou seja, quando tiver passado um século da fundação da República por Mustafa Kemal Atatürk, quando chegarmos a 2023, a data até à qual o actual Presidente, Recep Tayyip Erdogan, quer permanecer no poder para cimentar o estatuto de “novo pai” dos turcos nas comemorações do centenário, os curdos estarão prestes a celebrar um outro centenário, bem mais triste, de duras memórias. Não faz mal. Quer dizer, faz, claro que faz. Mas é só a vida a ser vivida. Se os outros, com armas desiguais e poder desmesurado, não deixam que se viva de outra forma, vai-se lutando como se pode. E sobrevivendo, sempre.

“Eu sei que são apenas umas semanas mais calmas. Mas parece que estamos há um ano em paz. Passou pouco tempo, mas é que foi tão intenso…”, diz Kadri, jovem curdo que estudou Línguas e Literatura na expectativa de trabalhar como guia turístico e intérprete para jornalistas e empresários, hoje com muito pouco trabalho.

“Há meses que não vêm cá jornalistas, nem estrangeiros nem turcos. Têm medo”, diz Akincilar. “Nós até organizámos conferências internacionais sobre a protecção das crianças, mas as organizações internacionais e as ONG simplesmente não vêm. Não se atrevem”, conta o académico que conhece Portugal e regressou há pouco de uns dias em Lisboa, folheto do Museu do Aljube na mão quando nos recebe na sede do instituto, sorriso aberto e disponibilidade total.

Kadri, mesmo com os estudos, que lhe dão bastantes mais alternativas do que as da maioria dos seus amigos entre os 20 e os 30, não vê grandes saídas. “Se for para outra cidade, para o oeste, toda a gente vai saber línguas como eu e não será fácil arranjar trabalho.” E então, vai ficando, mesmo sabendo que podem vir aí mais invernos como o último. “Passou pouco tempo desde a acalmia, mas foi tão intenso que cada novo dia dura imenso. Não parava, ouvíamos bombardeamentos ou combates, disparos ou atentados suicidas. Todos os dias”, descreve.

A apatia e o medo

Desde o golpe falhado que muitos se interrogam, como a cada choque sofrido na Turquia (e são muitos, “neste país, as coisas mudam todas as semanas”, diz Akincilar), se as consequências para o futuro político dos curdos, ou pelo menos para o seu quotidiano, serão boas ou más. Se o que hoje concentra as atenções do mundo na Turquia faz diferença para um povo em que a excepção é a regra, “os bombardeamentos por helicópteros, por tanques, as detenções arbitrárias, os deslocamentos forçados da população, a punição colectiva, tudo é vivido como se fosse normal, mesmo se, às vezes, o dia-a-dia se torna insuportável, de tal forma que se criou uma espécie de apatia”.

O último ano não foi como os anos 1990 mas isso é porque os anos 1990 foram isso mesmo, anos. O que aconteceu entre o Outono de 2015 e a última Primavera por aqui só pode ser descrito com palavras daquelas guardadas para períodos e acontecimentos excepcionais. “Armagedão”, diz Baris Yavuz, curdo de Diyarbakir, responsável da Fundação dos Direitos Humanos da Turquia na cidaede.

“Uma espécie de Blitzkrieg descontrolado do Estado”, diz Akincilar, lembrando que nunca morreram tantos civis num tão curto espaço de tempo (mais de 300, incluindo pelo menos 82 crianças, cidades inteiras destruídas, bairros de Diyarbakir em pó, 1,6 milhões de afectados, mais de 1 milhão de deslocados, “a perda de esperança na paz, uma desilusão que somada ao nível de destruição física equivale a uma destruição social, no sentido em que as famílias são desmembradas e o medo se instala”).

Para a generalidade das ONG, organizações de defesa dos direitos humanos, a resposta óbvia é: vai ser mau. Se Erdogan e o seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder desde 2002) vão reforçar o seu poder e algumas das leis antiterroristas, com o período de detenção sem acusação, por exemplo, alargado já para os 30 dias, os curdos vão sofrer, como sempre, ainda mais.

Para alguns observadores, a resposta óbvia é: vai ser bom. Se Erdogan e o AKP estão concentrados no combate e nas purgas ao movimento do imã Fethullah Gülen, que o conjunto dos partidos turcos responsabiliza pelo golpe, se afastam dezenas de milhares do aparelho burocrático e detém milhares de membros das diferentes forças de segurança, vão esquecer-se durante um tempo dos curdos, não é possível estar em tantas frentes em simultâneo, com a mesma determinação.

A desconfiança e o HDP

Pode ser que a resposta, como tantas vezes, esteja no meio. Akincilar acusa Gülen e os seus seguidores infiltrados com a bênção de Erdogan (os agora arqui-rivais são ex-aliados) de terem feito tudo para minar as negociações entre o Governo e os representantes curdos, as mesmas que permitiram um cessar-fogo de dois anos, de 2013 a 2015, entre o Estado e o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, a face armada de uma guerra civil que já fez mais de 40 mil mortos e teve o seu auge nos tais ambos 1990).

Sem gulenistas nas Forças Armadas, na polícia e nos serviços secretos, “se um dia as negociações forem relançadas haverá consideravelmente menos riscos de provocação, isso é o lado cor-de-rosa do que estamos a viver”, diz. Mas claro que “Erdogan é líder muito, muito oportunista, e vai usar tudo para consolidar o seu próprio poder, não tenho dúvidas sobre isso”.

O que vale aos curdos, e isto não é um paradoxo, é desconfiarem de tudo e de todos. “Infelizmente, não têm nenhuma confiança em Erdogan nem em nenhum outro grupo, até no interior do HDP os curdos desconfiam do resto da esquerda, dos ecologistas…” explica Akincilar. Assim, não há expectativas a serem defraudadas. Apenas um longo caminho e a certeza de que este será duro.

O HDP é o Partido Democrático do Povo, mais ou menos aquilo que Akincilar e muitos outros começaram a defender em 2009, uma tentativa à qual o AKP (e Gülen) respondeu com vagas de detenções. O pesadelo de quem mandava regressou, e em força, quando, o ano passado, o HDP irrompeu na Assembleia Nacional, tornando-se na terceira força política do país ao mesmo tempo que era a primeira pró-curda a apresentar-se a votos enquanto partido (antes, os curdos eram eleitos como independentes, para contornaram a fasquia dos 10% que é preciso ter para entrar no Parlamento e adiarem as sucessivas ilegalizações de partidos curdos pela justiça, a pretexto de laços ao PKK).

Este HDP, que devolveu a esperança a Akincilar e tantos turcos não curdos, só existe como existe porque a Turquia experimentou, em 2013, a sua própria revolução popular pacífica. Serão para sempre os protestos do Parque Gezi, ou da Praça Taksim, de Istambul, mas foram uma vaga de protestos nacionais de dimensões inéditas – começaram com uma pequena manifestação contra o derrube de um parque, e cresceram com a repressão brutal ordenada por Erdogan. “Esta geração, que participou nesta espécie de Indignados, votou HDP”, diz Akincilar.

União e oposição

Grande parte do mérito pertence ao curdo Selahattin Demirtas, advogado que foi recusado nas fileiras do PKK e acabou líder desta experiência inédita na política turca. “Lembro-me de duas vezes em que ele errou, não se soube expressar, foi aí que concluiu que não é um robot, um computador político”, afirma Akincilar. “Mas de resto, foi muito competente, soube fazer a síntese dos sentimentos, das expectativas, necessidades e exigências da juventude turca, da juventude curda, dos que se opõem à destruição da natureza, das minorias culturais e sexuais, mesmo das comunidades islâmicas democratas, conseguiu juntar todo este povo.”

Um dos grandes paradoxos da questão curda na Turquia, país onde os curdos são 15% a 30% da população (de 80 milhões), é que se a sua própria existência é negada – e Erdogan, que desde o golpe se reconciliou com toda a oposição, que se opôs, em uníssono, à tentativa de derrube do regime, recusou fazê-lo com o HDP –, “num certo sentido, eles representam a única possibilidade real de oposição no país”, diz Akincilar e, a acreditar nos resultados que o partido obteve em Junho de 2015, são muitos a concordar.

“Os sociais-democratas do CHP [Partido do Povo Republicano, fundado por Atatürk] e os ultranacionalistas do MHP [Partido do Movimento Nacionalista] estão todos alinhados com o partido no poder, ainda mais agora”, diz o académico.

Que futuro então para Kadri, para a filha de Akincilar, para as milhares de crianças e adolescentes que passam estes dias de Verão nas ruas de Diyarbakir, contentes por poderem sair sem combates mas sem nada para fazer a não ser brincar nas poças?

O centro de investigação independente de Akincilar participou directamente nas negociações a que ele não chama de paz mas de diáologo. Três dos fundadores foram escolhidos pelas partes para agirem como “homens sábios” e Akincilar diz que, por isso, o fracasso das conversações também é dele. “Sim, nós falhámos.” Mas isso não quer dizer que o futuro esteja perdido e traçado. Até porque, entre todas as tragédias que a Síria pôs a descoberto desde 2011, também obrigou Ancara a fazer a sua auto-análise.

A vida é simples

“A Turquia está bem consciente de que os curdos já não estão à margem dos acontecimentos. O PKK não é um pequeno grupo subversivo, é muito mais poderoso do que muitos estados na região”, sublinha. “Bem, temos os americanos e os russos a competir pelo apoio aos curdos, outra tragédia da História”, diz, entre mais risos.

Certo é que da tragédia dos últimos meses no Curdistão turco se pode traçar “um paralelo com o que aconteceu em Rojava e aqui”, Rojava é o Curdistão sírio (ou Ocidental), onde milícias curdas treinadas e apoiadas pelo PKK se tornaram no principal aliado dos Estados Unidos e combatem tanto os jihadistas do Daesh como, às vezes, Bashar al-Assad ou outros grupos da oposição ao ditador. E onde também se fazem experiências de governação curda.

Para Akincilar, quando tentou dobrar os curdos, nos últimos meses, começando logo depois do sucesso eleitoral do HDP, o que Ancara queria não era acabar com a resistência, que isso não é possível. “O objectivo é ter o PKK a regressar às negociações numa posição mais fraca. Às vezes, infelizmente, a vida é tão simples.”

O que isto significa é que há uma solução no horizonte, mesmo que a linha seja movediça e nunca se saiba muito bem até onde se pode afastar. “Penso que pode haver uma solução no sentido em que os três cantões curdos, ou multi-étnicos [do Norte da Síria], serão unidos num corredor, mas eles também tentarão contentar a Turquia e deverão criar uma pequena faixa de opositores sírios amigos da Turquia. Provavelmente este é o acordo que já está negociado entre os russos, os americanos, os turcos e até os curdos”, acredita Akincilar. “Mas levará algum tempo para o fixar.”

Erdogan aterra na terça-feira em Moscovo, onde é esperado por Vladimir Putin e espera ser recebido com pompa, depois da reaproximação à Rússia, iniciada antes do golpe. As críticas dos países da União Europeia e dos EUA às purgas e à reacção musculada ao golpe, a juntar ao desencanto de muitos turcos com promessas nunca cumpridas de adesão, estarão a empurrar Ancara cada vez mais para a Rússia e para longe de Bruxelas.

“Será uma visita histórica, um novo começo. Acredito que nas conversações com o meu amigo Vladimir vamos abrir uma nova página nas relações bilaterais”, disse Erdogan, citado domingo pela agência turca TASS. “Os nossos países têm muito em comum.”

Do ponto de vista dos curdos, vale tudo o que contenha a promessa de uma estabilidade que nunca tiveram, uma normalidade que não seja ditada pela guerra e pela desesperança. O mais depressa possível. Quem sabe, antes de 2023 ou 2024?

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