As pessoas mecânicas nos desenhos de André Ruivo

Com Break Dance acabado de sair, e mais dois livros na calha até ao fim de 2016, André Ruivo afirma uma obra que encontra no desenho e no quotidiano urbano as suas principais fundações. Sejam bem-vindos à galeria dos seus absurdos e familiares bonecos.

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Bonecos gordos e magros, muitos sem braços, mas coloridos, quase todos coloridos. E sempre sérios, tão sérios que diante deles o leitor sente-se vexado, tenso, confuso. Não, não fiquem desse lado. Entrem, entrem na galeria absurda e cómica de Break Dance, momento singular no percurso do desenhador que é André Ruivo. E adivinharam, é de um livro que se trata, mas daqueles que sacode, impertinente, géneros, estilos ou escolas. Ilustração? BD? Caricatura? Uma arte híbrida? Chamemos-lhe desenho. Há pelo menos uma década que o seu autor o faz, atenta e repetidamente, antes de o mostrar em pequenas publicações ou livros, como Break Dance, editado a meias pela The Inspector Cheese Adventures e a Mmmnnnrrrg. Realizado entre 2006 e 2007, em cadernos pautados, com caneta esferográfica e lápis de cor, deixa ver, nas suas páginas, a presença de um trabalho quotidiano, diário. “Foi feito todas as noites, antes de me deitar. Desenhei em cadernos, às vezes três, quatro por mês. Agrafados, em espiral, pautados, quadriculados. Comprei um caderno por semana e uma esferográfica por dia. Acabei por juntar 350 desenhos e escolhi 100 para este livro”.

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André Ruivo não se preocupou em apagar as marcas da tinta, a pressão da esferográfica, os borrões. “ [O meu trabalho] geralmente corresponde a uma obsessão. Oferecem-me uma caixa de lápis de cor e eu não descanso enquanto não acabar com ela. Foi assim com o Break Dance onde me vinguei dos cadernos pautados dos tempos de escola. Desenho desde sempre, todos os dias, de forma natural, obsessiva. Os livros são compilações dos meus desenhos. Publico-os depois no blog [ruivo-andre.blogspot.com] sem critério, antes de os organizar por séries”.

Entre as séries, existem laços. Nas páginas do novo livro descobre-se um parentesco com os desenhos de Mystery Park, realizados em Londres, onde o artista estudou em 2005. “Eram retratos de londrinos, pessoas que eu observava. Em Break Dance, os desenhos já não são baseados em gente real. São bonecos. Algures entre Nova Iorque, Lisboa e o Alentejo”. Tente-se uma nova descrição desses bonecos. Combinações de máquinas ou de animais, monstros coloridos, talvez pouco humanos. Aquele podia ser um turista, mais à frente, está um vendedor ou um empregado de escritório. E há figuras engolidas por nebulosas negras, seres invadidos pelo preto riscado de grandes bolhas. “Tento sempre que sejam pessoas, em pose, de corpo inteiro, mas nem sempre consigo e no final do livro as personagens tornam-se algo disformes. Com os corpos escondidos, transformam-se numa espécie de burkas, desenhos quase abstractos, mas não os considero monstros. Representam pessoas, habitantes de uma cidade”

É do quotidiano que chega a inspiração, a vontade de desenhar. “Gosto muito de observar as pessoas nas ruas, os seus hábitos, os gestos. Gosto das roupas que vestem. Nunca fui muito de desenhar do natural, com modelo, ao vivo, talvez por timidez. É mais fácil passar um dia na rua e depois trazer essa informação para o meu quarto e desenhar, num misto de memória e imaginação”. E deste trabalho nascem personagens que parecem esconder os braços, as mãos, os gestos. Há um laconismo, um mutismo inquietante na imobilidade que exibem. “Gosto de as desenhar assim. São bonecos toscos, como matraquilhos. E chamo-lhes bonecos porque tentei fazê-los sair das folhas, como tivessem três dimensões. A riscar com força o papel, quase a rasgar as folhas”.

A loucura dos gestos

É esse riscar que nas últimas páginas transforma as personagens em manchas, formas larvares, ameaçando retirar-lhe definitivamente qualquer humanidade. Sobre a folha impressa, a pressão da tinta confere uma pele aos bonecos, apanha-os, surpreendidos, na sua metamorfose. “Considero-as personagens ensimesmadas, presas, dentro de um casulo, fechadas. Há uma certa introspecção”. Não é esse o sentimento que André Ruivo procurará explorar em Retratos, o seu próximo livro, onde a tinta da esferográfica cederá o lugar aos pastéis de óleo. “Vai ter um formato maior, em A3, com um conjunto de personagens inventadas, pessoas inexistentes mas com direito a retrato. Falsos vizinhos, professores, funcionários públicos. Não têm os olhos dos bonecos de Break Dance, são retratos mais realistas. Vão estar a olhar para mim, para os leitores, em tamanho real”.

O Semáforo Amarelo é outro projecto em que o artista tem estado envolvido. Trata-se de um livro digital, com o selo da Dois Dias Edições. “É um conjunto de desenhos feitos para ecrãs, monitores, tablets e telemóveis. São periferias de cidades, subúrbios. Comecei por fazer cenários para um filme, mas a dada altura achei que era mais interessante vê-los a sós. Sem filme ou personagens, apenas edifícios, prédios, casas, espaços vazios. Cidades desertas”.

Este tom algo melancólico não se deve confundir com desânimo. O desenho de André Ruivo celebra as cores, o movimento, com ironia e distância, mas sem cair no desespero. E a propósito de Break Dance é o próprio artista que faz uma ressalva: “Considero-o um livro muito positivo. Termina com aquelas personagens negras, mas não estou a contar com uma história. Há ali bonecos que estão bem com a vida e há outros que não. Uns olham de frente, outros são envergonhados. Uns conseguem brincar e outros não conseguem sair dos seus problemas. Mas o que existiu mesmo foi uma grande vontade de sujar, de riscar, de infringir. Estava muito interessado em arte urbana, em grafitis”.

A rua, espaço de experiências visuais, de pequenas paisagens e situações, lugar de passagem e vivências, marca o desenho de André Ruivo, como assinala o título do livro. Para lá das referências que emergem sob um olhar atento (Robert Crumb, Philip Guston, Kafka, Robert Balser, criador dos terríveis Blues Meanies do filme Yellow Submarine, de 1968), há uma que salta do papel: a cultura urbana. “As actuações de breakdance de rua sempre me fascinaram. Os movimentos quebrados, repetitivos, quase máquinas, a deformação do corpo. Acho que os breakdancers apanham bem uma certa loucura dos gestos repetitivos quotidianos, das pessoas mecânicas”.

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