Depois do golpe falhado, talvez Erdogan “adopte os princípios do secularismo”

Savas Biçer não está preocupado com o futuro das Forças Armas turcas. Acredita até que o golpe que não chegou a ser se transforme numa bênção, agora que Governo e Presidente perceberam que deviam ter confiado nos avisos dos seus militares.

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"O 15 de Julho fracassou por falta de coordenação e porque havia suficientes oficiais avisados sobre esta estrutura paralela" Ilyas Akengin/AFP

Um coronel na reforma nunca se afasta assim tanto da vida militar. No caso de Savas Biçer, à Infantaria seguiu-se a investigação e o Instituto para os Estudos Estratégicos da Faculdade da Guerra Turca, onde ensina. Na Turquia, “uma nação militar”, não há detenções ou exonerações por “desonra” que ponham em causa a capacidade ou a imagem das Forças Armadas, defende. “O secularismo não é só a ideologia do Exército”, é o princípio fundamental do Estado. Com o golpe de Estado militar, promovido há duas semanas por um movimento islamista, a única mudança que admite é o Presidente turco, o islamista Recep Tayyip Erdogan, adoptar de forma “mais vigorosa” esse mesmo secularismo.

Acreditava que podia haver uma tentativa de golpe de Estado militar como o de 15 de Julho?
Não. Parámos há muito tempo com a era dos golpes militares. Ninguém esperava. Muito menos uma tentativa de golpe deste tipo de gangue, que usurpou uma parte das Forças Armadas. Ninguém esperava mesmo, não só do ponto de vista dos militares. Ninguém na Turquia pensava que isto pudesse acontecer. O período dos golpes ficou para trás, acabou há mais ou menos 20 anos, não há nenhuma razão que justifique um crime destes.

Os responsáveis são seguidores de Fethullah Gülen (o imã ex-aliado do Presidente, exilado nos EUA)?
Sim, está provado. Muitos já confessaram.

Tinha ideia de que o movimento estava tão infiltrado nas Forças Armadas?
Sabíamos que tinham lá muita gente. Eles infiltraram-se em todas as estruturas de Estado, não só nas militares, estavam na polícia, em todas as forças de segurança, nos departamentos médicos, nos gabinetes técnicos. É inimaginável que tenham conseguido este nível de presença, mas aconteceu. Na verdade, já sabíamos que eles tinham poder. Desde o caso ‘Ergenekon’ [quando 500 pessoas, incluindo muitos militares, foram detidas, acusadas de conspirar contra o Estado num processo que terá sido forjado por procuradores ligados a Gülen] que havia avisos dos militares.

As chefias diziam que este grupo terrorista estava infiltrado em todas as estruturas democráticas do Estado. Na mente deles já havia a intenção de realizar um golpe. Mas o Governo [do AKP, partido de Erdogan, no poder desde 2002] ignorou os avisos dos militares. Só percebeu o perigo há pouco tempo, há pouco mais de um ano, quando o primeiro-ministro [em Dezembro de 2013, era Erdogan chefe de Governo], a sua família e alguns ministros foram envolvidos num escândalo de corrupção inventado com documentos falsos, forjados a partir do interior das forças de segurança.

Quando o AKP e Erdogan perceberam já era tarde de mais?
Era demasiado tarde porque eles já se tinham infiltrado de forma profunda no Estado. O 15 de Julho fracassou por falta de coordenação e porque havia suficientes oficiais de alta patente avisados sobre esta estrutura paralela. Eles nunca teriam o apoio de 100% dos militares. Acima de tudo, falhou porque eles anteciparam os planos. Sabiam que muitos seriam afastados na reunião de alto nível planeada para o início de Agosto [Supremo Conselho Militar]. Perceberam que tinham de avançar antes dessa data. Souberam pelos conspiradores nos serviços secretos. Talvez eles estivessem a planear avançar com um golpe para o ano, ou daqui a cinco anos. Em cinco anos os que agora eram brigadeiros e coronéis já estariam em posições superiores. Mas perceberam que não tinha tempo. E no próprio dia souberam que os serviços secretos estavam em cima deles, já desconfiavam. Foram obrigados a antecipar em cinco horas os seus planos. Falharam por estarem mal preparados e por terem agido àquela hora, numa sexta-feira às 21h, com toda a gente na estrada.

Se tivessem podido esperar pela madrugada de sábado, com o apoio que tinha, teriam sido bem-sucedidos?
Não sei, é possível. Se eles agissem de acordo com os planos e tivessem conseguido podia acontecer uma guerra civil. Graças a Deus que falharam. Muitas pessoas nas Forças Armadas nunca desistiriam e ia haver confrontos. Se eles tivessem conseguido capturar o Presidente ou o primeiro-ministro, nem quero pensar.

Este golpe falhou por causa dos golpistas envolvidos ou qualquer golpe de Estado teria tido a mesma reacção?
Nenhum golpe de Estado é aceitável actualmente. Nem para o povo, nem para o conjunto das Forças Armadas, a Turquia é um país democrático.

Com todas as detenções e exonerações, incluindo de oficiais (40% dos generais e almirantes foram afastados desde o golpe), a capacidade das Forças Armadas vai ficar fragilizada?
Não, não. No encontro [de quinta-feira, dia 28 de Julho, do Supremo Conselho Militar] já foram preenchidos todos os lugares, todas as posições que tinham ficado vagas com as detenções e as exonerações. No Exército, principalmente, a Turquia tem gente de sobra, em quantidade, mas também em qualidade. Todos os oficiais tiveram a mesma educação e estão sempre prontos. Um coronel está sempre pronto para passar a brigadeiro. Um general de uma estrela está sempre pronto para subir no ranking. Somos muito bons, principalmente nas operações de contraterrorismo.

As preocupações manifestadas por alguns aliados, nomeadamente os EUA, sobre as Forças Armadas poderem continuar a cumprir os seus compromissos, no combate ao Daesh, por exemplo, são compreensíveis?
Não, isso é ridículo. As posições já foram todas preenchidas por gente competente. Houve 50 coronéis promovidos a brigadeiros e brigadeiros que passaram a generais. Temos pessoal preparado mais do que suficiente.

Então, não há razões para nenhuma preocupação?
Não, e eles sabem isso. Os nossos aliados sabem isso, mas os EUA sabem isso muito bem, melhor do que outros. Estas preocupações só podem ter um motivo concreto, que é o facto de algumas das pessoas com quem eles contactavam e colaboravam directamente terem sido afastadas e essa colaboração ter parado momentaneamente. Quando recomeçarem os contactos habituais eles vão perceber que não há motivo nenhum para estarem preocupados. É verdade que desapareceram alguns militares que ocupavam cargos de chefia em departamentos de alto nível que colaboram tanto com os americanos como com a NATO. Eles podem pensar, ‘este general de 3 estrelas com tanta experiência foi afastado?’. Mas depois vão perceber que quem o substituiu também tem experiência e está pronto para recomeçar o trabalho.

Esta tentativa de golpe vai mudar a percepção dos turcos face às Forças Armadas? Vai manchar a imagem dos militares?
Não, não. Este Exército vem do povo turco, não é feito de outro povo. Se os turcos pensarem mal do Exército quer dizer que estão a pensar mal das suas próprias tradições, dos seus valores, de si próprios. A nação turca é uma nação militar, é um país de Exército.

No Sudeste da Turquia, onde os últimos meses foram muito violentos, há quem se sinta vingado com as prisões de militares. O golpe e as suas consequências vão mudar o que se passa na região curda?
Não, os militares envolvidos no golpe no Sudeste do país representam uma pequena parte das Forças Armadas nessas regiões. Os militares que combatem o PKK [Partido do Povo dos Trabalhadores] e que protegem as fronteiras da Turquia continuam a fazê-lo. O comandante foi detido, é certo, mas foi substituído por um militar da região. Não há ninguém que não seja do Sudeste a ser mobilizado para lá, os comandantes não são novos e sem experiência, só subiram de posição.

O Exército sempre foi visto como guardião do secularismo e dos princípios fundadores da República. Agora que foi infiltrado por um movimento islamista, essa imagem não vai mudar?
Claro que não, o Exército é exactamente o mesmo. Os princípios fundadores da República da Turquia são realmente importantes e têm de ser adoptados pelo Estado, por todas as estruturas e instituições do Estado. O secularismo não é só a ideologia do Exército. A Turquia é uma República secular, social e justa, é o que diz no 1º artigo da Constituição.

A recção ao golpe vai trazer alterações ao equilíbrio da separação de poderes? Para além das detenções e exonerações, o Presidente e o Governo estão a mudar as estruturas de comando, Erdogan quer o chefe do Estado-Maior a responde directamente ao Presidente. As Forças Armadas vão sair enfraquecidas?
Não, o Governo é que percebeu e deu razão aos militares. Percebeu que falhou, que cometeu um erro enorme ao apoiar esta organização terrorista no passado. Percebeu que havia verdade por trás dos avisos das Forças Armadas, sobre o perigo de deixar estas pessoas entrarem no Estado.

Mas não sai disto um Presidente mais forte e umas Forças Armadas mais fracas?
A única mudança que eu antecipo virá do Presidente. Depois disto, é natural que ele aborde os princípios fundadores da Turquia de outra forma, que os abrace. Isso é positivo. O Presidente adoptar com mais vigor os princípios de secularismo é muito bom para a harmonia nacional.

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