A feliz estreia olímpica do Sudão do Sul transformou-se num embaraçoso escândalo

Um refugiado que regressou ao país para homenagear o pai morto na guerra acabou por ser afastado do Rio de Janeiro a uma semana do arranque da competição. Uma campanha publicitária falou mais alto que os recordes em pista, admite o comité olímpico.

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O comité olímpico do Sudão do Sul admite que Margret Rumat Rumar Hassan foi convocada porque protagoniza uma campanha da Samsung DR

Seria sempre uma história bonita, a estreia do mais jovem país do mundo nos Jogos Olímpicos. Mas na ânsia de a contar, uma marca de telemóveis é acusada de ter influenciado o processo de selecção da comitiva sul-sudanesa no Rio de Janeiro. Agora, há um duplo campeão nacional desconvocado através de um email e uma atleta que vai ao Brasil porque protagonizou uma campanha publicitária.

O escândalo deflagrou esta semana quando Mangar Makur Chuot, um velocista radicado em Perth, na Austrália, foi notificado por email que estava afastado da pequena comitiva olímpica do Sudão do Sul. Chuot, de 25 anos, foi campeão nacional nos 200 metros no país que o hospedou e repetiu o título na terra natal, onde regressou para poder competir sob a bandeira da mais jovem nação do globo, independente desde 2011. No Rio, a correr com as cores nacionais, homenagearia o pai, uma das mais de um milhão de vítimas da guerra civil que resultou na partição do Sudão.

Em vez disso, e ao arrepio da convocatória feita pela federação sul-sudanesa de atletismo, o comité olímpico nacional chamou a velocista Margret Rumat Rumar Hassan, de 19 anos, e o maratonista Guor Marial, de 32 anos. É a inclusão de Margret que gera particular controvérsia. A atleta, que competirá nos 200 e nos 400 metros, é protagonista de um filme publicitário da sul-coreana Samsung que, só no YouTube, já foi visto mais de 22 milhões de vezes. O anúncio traça o paralelo entre as aspirações olímpicas da corredora e a esperança de um país pobre que ainda não superou a instabilidade militar. A questão é que a Margret não é sequer a melhor velocista sul-sudanesa da actualidade. Viola Lado, que não irá ao Rio, correu os 200 metros em 26,98 segundos nos últimos Jogos Africanos, batendo o recorde nacional e superando a melhor marca de Margret por seis décimas de segundo.

Num email enviado ao Guardian, que revelou a história, o secretário-geral do comité olímpico sul-sudanês admite que a convocatória tardia da atleta está directamente relacionada com a presença na campanha de um dos patrocinadores oficiais dos Jogos. “Ela foi contratada pela Samsung para um anúncio rumo ao Rio, por isso temos de completar a história dela no Rio”, escreveu Tong Chor Malek Deran. Mais tarde, e em entrevista à rádio australiana ABC, o responsável repetiu a justificação: “Porque já tínhamos um contrato assinado com a Samsung. Seria uma violação do nosso contrato”.

Em comunicado, a marca sul-coreana nega qualquer envolvimento no processo: “A Samsung não tem qualquer acordo de patrocínio com a comitiva olímpica sul-sudanesa e a Samsung não esteve envolvida nas decisões do comité olímpico do Sudão do Sul”.

Em guerra com o comité olímpico, a federação sul-sudanesa de atletismo decidiu entretanto desfiliar Margret e Guor Marial, o que poderá afastar automaticamente os dois atletas dos Jogos Olímpicos. O comité, no entanto, diz que Chuot terá de esperar por 2020 para cumprir o sonho olímpico. Na Austrália, o treinador do velocista diz-se receoso pelos efeitos de uma desconvocação de última hora após “seis anos a treinar seis dias por semana”.

“A minha principal preocupação é a saúde de Mangar. Estou muito preocupado. Isto arrasou-o completamente”, disse Lindsay Bunn ao Guardian. O técnico que descobriu Chuot a correr num parque em Perth aos 16 anos, descrevendo o momento como ver “uma girafa com anfetaminas”, vai apresentar uma queixa no Tribunal Arbitral do Desporto, em Lausana, com o apoio da federação sul-sudanesa.

A poucos dias de desfilar no Rio, é certo que a comitiva do mais jovem país do mundo fará história e dará uma pequena alegria a uma nação que ameaça resvalar para uma nova guerra civil. Resta saber quem protagonizará o conto.

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