As carroças e o deputado que é um "veículo de tracção animal humana"

Proposta de resolução do PAN que pedia ao Governo um estudo sobre os utilizadores de veículos de tracção animal e a regulamentação existente foi chumbada por todos os partidos e oito deputados do PS abstiveram-se.

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Paulo Pimenta

Foi a sua última intervenção no plenário da Assembleia da República enquanto deputado e Abel Baptista soube marcá-la com humor. O centrista auto-intitulou-se um “veículo de tracção animal humana” para se descrever quando anda de bicicleta.

“Porque não é preciso nenhuma licença, nem carta de condução e nem sequer seguro” para guiar uma bicicleta e esta também anda na via pública. Tal como as carroças e charretes que o PAN começou por querer proibir de ali circularem e agora só pede que o Governo inventarie quantos as utilizam e qual a regulamentação a que estão sujeitas.

Essa proposta, constante num projecto de resolução foi chumbada por todos os outros grupos parlamentares esta quarta-feira no plenário, tendo a abstenção de oito deputados do PS. O projecto do PAN vinha à boleia de uma petição que proibia a circulação de carroças na via pública, subscrita por perto de 4400 pessoas e promovida por um empresário algarvio do ramo automóvel. O texto justifica o pedido com argumentos de segurança rodoviária e de necessidade de assegurar o bem-estar animal.

Abel Baptista defendia que os argumentos da falta de regulamentação são uma “falácia”. “Eu sou ciclista e não preciso de nenhum tipo de licença, carta de condução ou seguro de responsabilidade civil. E, no entanto, podemos dizer que é um veículo de tracção animal, com uma diferença, é que é um veículo de tracção humano”, disse o deputado sob risos e aplausos dos outros deputados.

O centrista disse que no projecto de resolução do PAN “não tem em conta as pessoas”, “não defende os animais e está a atacar a natureza”. Considerou mesmo que “impedir pessoas que têm uma dificuldade de mobilidade de circularem na via pública é um atentado à dignidade humana porque há pessoas no interior que usam estes veículos tratando bem os animais, para poderem fazer mobilidade pessoal, fazendo o transporte da pouca mercadoria que conseguem cultivar nas suas parcelas agrícolas para vender no mercado local que desta forma seriam impedidas.”

O deputado defendeu ainda que há muitos animais que “já estariam provavelmente extintos” se não tivessem sido protegidos e usados para tracção e passeio, como o burro mirandês e o cavalo de raça garrana. “O bem-estar animal tem que ser compatibilizado com a convivência humana, mantendo a convivência não só rodoviária mas também de animais e pessoas.”

A social-democrata Fátima Ramos questionou-se sobre a necessidade de saber “se primeiro estão as pessoas ou os animais” e disse que as propostas do PAN, “aparentemente inofensivas”, poderão “ter por trás uma tentativa de penalização e proibição do uso destes veículos”. Defendendo que a “economia tem que funcionar” e que “no meio rural as pessoas ainda usam muito estes veículos e nos centros históricos são utilizados com função turística”, a deputada disse temer que “haja uma sobreposição do meio urbano sobre quem vive no campo”. Argumentou com pareceres do IMT e da ANSR para dizer que as carroças e charretes não têm perigos significativos atendendo à velocidade destes veículos e que se autoridades entenderem que é periga a sua circulação em algumas vias, podem proibi-las. “Não é por haver legislação proibitiva que os animais são melhor tratados”, avisou.

Bruno Dias, pelo PCP salientou que há muita gente que “trata bem estes animais”, e lembrou a “realidade feita de necessidade, abandono [das populações], reformas de miséria, serviços públicos encerrados e transportes inexistentes” que obriga muitas gente das aldeias a usar estes veículos. “Pode parecer estranho para muitos deputados, mas nas aldeias de Trás-os-Montes, da Beira Interior ou do Algarve, quem passa horas a deslocar-se numa carroça para ir ao mercado e à farmácia, quem vive em situações de pobreza extrema, andando de terra em terra com as carroças e os animais, quem vive dessa maneira não o faz por capricho”, disse o deputado. Apontando o nome do partido proponente, Bruno Dias disse que “falta no texto a parte sobre as pessoas; (…) é revoltante a indiferença com que são tratadas as pessoas, as suas condições de vida e a sua pobreza”, recebendo até palmas do CDS-PP. “A prioridade neste debate devia ser a procura de soluções de mobilidade e de vida.”

O ecologista José Luís Ferreira defendeu que a discussão sobre a utilização de veículos de tracção animal tem que ser enquadrada num plano mais alargado e relacionado com as “dinâmicas do mundo rural”, e também “salvaguardando o bem-estar animal”. Lembrando a proposta original do PAN, que seguia a da petição que pedia a proibição da circulação destes veículos na via pública, o deputado considerou que ela “roçava ao fundamentalismo ao proibir, sem mais nada”.

António Cardoso, pelo PS, concordou com a criação de um registo dos animais usados neste tipo de veículos, partilhou das preocupações com a segurança rodoviária e o bem-estar animal, mas considerou que as questões da regulamentação em termos rodoviários “já estão acauteladas na legislação vigente”. Heitor de Sousa, do Bloco, também defendeu que o Código da Estrada já tem normas e quando estas não chegam a regulamentação municipal pode fazer o resto. Criticou o facto de a petição e as propostas do PAN “convergirem na tendência proibicionista”, o que, “no contexto económico, social e local em que se aplicaria, seria uma discriminação ética ou racista e social sobre os sectores já de si mais pobres e excluídos da sociedade”.

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