Uma herança armadilhada

Nova Iorque, dinheiro, uma família complicada e uma estreia literária vendida com um avanço milionário fazem de A Fortuna, de Cynthia D’Aprix Sweeney, um dos livros mais falados do ano. Uma conversa com a autora que não tem herança por que lutar.

Foto
Cynthia D’Aprix Sweeney, 55 anos, estreante na ficção com um livro que lhe está a valer a atenção de editores, livreiros, cineastas e um contrato milionário com a Harper Collins: recebeu um milhão de dólares de antecipação de direitos para um romance centrado na relação entre quatro irmãos e uma herança com uma armadilha Lisa Whiteman

“É muito difícil escrever sobre Nova Iorque sem que o dinheiro surja na história”, afirma Cynthia D’Aprix Sweeney, 55 anos, estreante na ficção com um livro que lhe está a valer a atenção de editores, livreiros, cineastas e um contrato milionário com a norte-americana Harper Collins: um milhão de dólares de antecipação de direitos para um romance centrado na relação entre quatro irmãos e uma herança com uma armadilha. Publicado em Março nos Estados Unidos, The Nest — título original — está traduzido em vinte línguas e chegou agora a Portugal com o estatuto de best-seller. “É o dinheiro que determina em grande parte o nosso lugar nessa cidade, mais do que talvez em qualquer outro lugar do mundo”, continua a ex-profissional de marketing e comunicação que viveu em Nova Iorque desde a adolescência e até 2008, altura em que acompanhou o marido — um dos autores do programa de Conan O’Brien na TBS — para Los Angeles. Foi ali, longe, que reconstituiu de memória o ambiente em que se movimentam os Plumb, uma família disfuncional, meio neurótica que, diz, “não podia ter existido daquela forma em qualquer outro sítio” e que uma das personagens adolescentes classifica, nas suas alianças e ressentimentos, assim: “Não são chegados, mas é uma situação complicada. Eles são todos um bocado esquisitos”.

A acção do romance decorre na Nova Iorque do início do século XXI, imediatamente antes e depois da crise monetária mundial, logo após uma “época em que lançar uma revista ainda não era uma pura loucura”, e onde o arrojo que fez da cidade um símbolo de irreverência e criatividade está a perder a favor da “normalidade” e do conforto que o dinheiro pode comprar. “Desde quando é que Nova Iorque se tornara tão cobarde e tão patética?”, interroga-se Leo, uma das personagens, enquanto fuma um cigarro na zona ribeirinha de Brooklyn, virado para Manhattan. Ele é um dos quatro irmãos que conhecemos no arranque do livro, quando se preparam para um almoço em que se irão confrontar com o seu lado mais sombrio e uma mesquinhez que nenhum deles quer ver revelada. Leo, o mais velho, acaba de sair de uma cura de dependência de drogas depois de ter sobrevivido a um acidente de carro que, entre outras coisas, acabou com o seu casamento, e devastou a herança familiar. Jack, negociante de antiguidades, esconde do marido, Walker, a hipoteca da casa de praia para salvar o negócio; Melody está disposta a quase tudo para não desistir de enviar as filhas gémeas para uma universidade de prestígio; enquanto Bea, uma escritora frustrada, tenta provar que é mais do que isso. Estes são os Plumb. 

“Sempre me interessei pelas relações entre irmãos adultos, talvez por ter crescido num meio católico italo-irlandês, onde toda a gente tinha muitos irmãos e irmãs. Nesse meio, a minha família parecia-me pequena, apesar de sermos oito. Mas quando comecei, não estava a conseguir avançar na história, até um dia em que estava em Nova Iorque, a caminhar pela rua para ir tomar um brunch, e surgiu-me uma imagem de quatro irmãos quase a encontrarem-se, cada um a beber um copo antes, por não quererem estar uns com os outros e melhor se suportarem juntos. Na minha cabeça eles eram como quatro esquinas separadas. Foi quando comecei a escrever essa cena que a história ganhou solidez e começou a fluir e as personagens surgiram de forma muito rápida”, conta Cynthia, a mais velha de quatro irmãos de uma família que, garante, não serviu de modelo aos Pulmb. “Estou muito grata por a minha família não ser assim tão interessante. Se escrevesse um romance sobre nós não seria um best-seller, o que é muito bom. Os irmãos Plumb não são como os meus irmãos, e não temos dinheiro de família ou herança por que lutar.”

O início de um romance

Ao telefone, a voz desmente a idade. Dicção sem mácula, tom claro, Cynthia D’Aprix Sweeney começa por se confessar surpreendida com o modo como a sua vida mudou desde a publicação do livro e começou a ser tratada por escritora. “Tenho estado sempre a viajar, a fazer o oposto do que é o trabalho de um escritor”, diz, antes de confessar que não sabe bem o que isso é, mas que tem de ter boa dose de “solidão e tempo”. Aprendeu este “óbvio” num curso de escrita criativa na universidade de Bennington, no Vermont, onde se inscreveu aos 50 anos. “Gosto muito de ficção e sempre pensei que um dia pudesse escrever. Coloquei-me longe dessa ideia durante muito tempo. Os meus filhos foram crescendo, fui envelhecendo, o meu trabalho deixou de me satisfazer e comecei a questionar-me sobre o que gostava realmente de fazer. A resposta começou a ser óbvia, mas demorei a comprometer-me com isso, até decidir fazer o curso de escrita e forçar-me a trabalhar, testar-me no sentido de saber se escrever era mesmo alguma coisa em que eu fosse boa”, conta esta admiradora de Jane Austen, Virginia Woolf, Flannery O’Connor, William Trevor, Alice Munro ou Laurie Moore, dizendo que se obrigou a grande disciplina. “É preciso produzir muito. Há um calendário rigoroso sem ninguém por perto à espera das nossas páginas de ficção. É preciso estar muito motivado, e eu estava. Tinha um mês para cada texto.”

Quando chegou altura de apresentar a tese o prazo alargou-se. Seriam dois meses. No caso de Cynthia, estenderam-se a seis e depois a mais uns quantos. Nascia o romance. “Comecei o livro no último mês do curso, quando mostrei uma história que tinham começado ao meu orientador de tese e ele achou que seria o início de um romance. Sugeriu que passasse alguns meses a fazer o máximo que eu pudesse, em vez de simplesmente terminar a tese no mês que faltava. Eu precisava de ter 150 páginas para que o livro pudesse funcionar como a minha tese. Foi o que fiz. Quando terminei o curso tinha 150 páginas do livro escritas.”

O preconceito

Começou a chamar a esse início The Nest, expressão que em inglês também significa herança. Era desse modo que Leo, Jack, Bea e Melody se referiam ao dinheiro que lhes fora deixado pelo pai e que a mãe geria até ao momento em que o mais novo dos seus filhos — Melody — fizesse quarenta anos. Só então o dinheiro seria libertado. “Nenhum deles se lembra quem começou a chamar à sua futura herança ‘a Fortuna’, mas o nome pegou”, lê-se no início do romance que em Portugal foi publicado justamente com o título A Fortuna e que, refere a sua autora, não é um livro sobre dinheiro apesar de o dinheiro andar por lá e, segundo ela, isso poder justificar parte do sucesso que marcou o princípio da vida pública da obra. “As pessoas gostam de ler sobre dinheiro”, refere, acrescentando, que neste caso, há também a tentativa de furar o preconceito “muito americano” de silenciar problemas financeiros.

Foto
Lisa Whiteman

“Há muita rerserva em falar sobre dinheiro, o que é contraditório quando o dinheiro está no centro de tudo. O meu livro está a levar as pessoas a falarem disso. Nas sessões de leitura há sempre alguém que me vem contar a história da sua família com o dinheiro. Isso surpreendeu-me, porque não pensei neste romance como sendo sobre dinheiro, mas sobre família”, afirma, um pouco à imagem de romances de outras épocas que marcaram a identidade literária de uma certa Nova Iorque, como os de Edith Wharton ou Scott Fitzgerald, nomes, aliás, citados pelas personagens de Cynthia, numa narrativa feita na terceira pessoa que sabe tudo acerca de cada uma das personagens, um narrador com uma linguagem próxima da de muitas séries televisivas que comanda a história para que ela vicie. E quando  junta ingredientes como Nova Iorque, alguma volúpia, dinheiro, culpa e ambição e a sensação de derrota pessoal que atinge a meia idade, meio caminho está percorrido.

“Sim, claro que é também sobre dinheiro”, concede, “as poupanças ou as heranças não são comuns por aqui e poupar é um conceito relativamente novo. Em muitas culturas espera-se qua as famílias deixem dinheiro, aqui não. Aqui há muito uma ideia de riqueza ganha contra outra de riqueza recebida”, continua Cynthia que, num enredo bem construído, denuncia alguns pecados ou fraquezas da sociedade actual colocando-os na biografia de personagens que tipificam o género aventureiro, como Leo, mesquinho, como Melody, trapaceiro, como Jack ou mais perdulário, como o de Bea. Eles não são só isto, mas nisto revelam uma cadeia complexa de relações que inclui quase tudo, e que permite a Cynthia movimentar-se com agilidade num meio que parece conhecer bem e que desta vez olhou à distância, desde Los Angeles. “Volto muitas vezes a Nova Iorque, mas enquanto residente como que congelei em 2008, o ano em que fui embora. Ajudou não estar lá, porque é fácil ficar distraída e achar que é preciso incluir mais coisas, mais detalhes. Não tive de me preocupar com isso mas apenas com a Nova Iorque que estava na minha memória, onde qual vivi e que conhecia bem. E depois sempre que voltava tinha uma espécie de confronto com o que estava no livro, muitas vezes para concluir que as coisas não tinha mudando tanto.” Quanto a ter quatro protagonistas, “foi óptimo”, diz. “Sempre que bloqueava ou me frustrava passava a outro. Ajudou que me pudesse mover em diferentes modos de ser. Isso só se complicou quando estava a rever o livro. Tinha de me certificar que as ligações estava bem feitas, que não havia quebras de ritmo e a leitura não se perdia algures. Estruturalmente foi um desafio.”

Quando saiu nos Estados Unidos, em Março, o romance era apresentado como um dos livros do ano. O azul tiphany da capa tingia a montra das principais livrarias das grandes cidades, convocando a memória associada ao luxo nova-iorquino. A Harper Collins apostava num best-seller. Uma escritora, estreante aos 55 anos, com um romance sobre uma família a lutar por uma herança num cenário que fornece todos os elementos para uma boa intriga, um avanço de direitos milionário, a compra pela Amazon Films dos direitos para cinema e a proposta para o transformar numa série de TV. “Há muita gente, inclusive a HBO, a querer adaptar o romance a uma série, mas não quero. Vendi os direitos para o cinema, não estou interessada em continuar a história depois de escrita. Para mim, o livro está terminado.”

Há champanhe, drogas, grandes carros, casas em Upper East Side, e há os subúrbios, hipotecas, a fuga a um sistema que parece ser o reflexo da neurose familiar. Não foi por acaso que o agente de Cynthia D’Aprix Sweeney escolheu a segunda-feira a seguir ao Dia de Acção de Graças para mostrar o original de A Fortuna aos editores. Ele justificava a decisão com a experiência colectiva e fresca desse distúrbio familiar. O livro de Sweeney não será grande literatura, mas é eficaz no modo como conta uma história numa geografia e num tempo determinados. 

Sugerir correcção
Comentar