Noite escura, amanhecer de memórias

Depois de Limbo, a Playdead entrega Inside, obra que se assume como uma das viagens digitais de 2016.

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Às vezes aparece um videojogo que jogar é abrir uma ferida que vai demorar muito tempo a sarar – e de cicatriz que ninguém sabe quando desaparecerá. Limbo foi um marco na cena independente, colocando a produtora Playdead com a sempre árdua tarefa do “segundo álbum” nas mãos. Inside é a continuação do seu percurso pela indústria, não sendo de forma alguma menor que a sua estreia, firmando inquestionavelmente o talento da casa dinamarquesa.

Há uma aura de mistério muito própria intrincada em cada minuto que Inside oferece, não faltando motivos para continuar a jogar, mas sempre com a incerteza de não se saber onde se vai colocar o pé e sempre longe de se ter a compreensão total de quem é aquele miúdo feito protagonista – quem é, porque está ali, para onde vai e, sobretudo, de quem foge? – são perguntas naturais que o jogo gere de uma forma imaculada.

Basta olhar para os primeiros minutos: Logo depois de o título desaparecer do ecrã vemos o protagonista de camisola encarnada a surgir no ecrã deslizando por uma pedra. Está escuro à sua volta, mas vislumbram-se os troncos das árvores pela divagação da escassa luz, começamos a correr porque é o que nos dita o instinto. Equilibramo-nos por cima de uma passagem através de um tronco deitado, frágeis e apequenados, silhuetas de homens de ocasião, lanternas que patrulham – não são amigos a quem podemos perguntar direcções, somos apanhados se não tivermos cuidado.

O que a Playdead estabelecer desde estes primeiros minutos é a nossa curiosidade em compreender Inside, o que nos leva a continuar sem perceber porquê, insistindo para ver no que dá, fugindo para não sermos anulados. O jogo tem-nos na mão desde este momento e ter-nos-á até não conseguirmos escapar mais, até rebolarmos por uma encosta abaixo daqui a três ou quatro horas e os créditos aparecem no ecrã.

Na sua essência, Inside é um jogo apresentado num plano 2D, ou seja, deslocamo-nos horizontalmente pelo cenário em primeiro plano enquanto o cenário vai-se mutando lá atrás. Além de correr, podemos saltar e interagir com determinados objectos, mecânica que é assimilada em meia dúzia de minutos e se finca como intuitiva e funcional. A obra recorre a este prisma cenográfico para contar a sua história, ou seja, não há pergaminhos de dez metros com descrições e contextualizações: ficamos investidos pela sua comunicação em actos, em cenas que contextualizam tudo o que há para contextuali8zar no exacto momento em que o título tinha que renovar contracto com a nossa curiosidade.

Contudo, apesar de se exibir com um sistema de controlo sem complicações, isso não significa que passar por Inside seja um passeio no parque à procura de respostas. Pelo caminho há vários puzzles embutidos no cenário, que sem nunca chegarem a ter a complexidade de The Witness, acabam por ser desafiantes não se tornando maçadores ou frustrantes. Aliás, os puzzles de Inside têm o dom de fazer o jogador inteirar-se da situação, tentar e errar, e compreender sem grandes demoras o que estava em falta ou o que estava a fazer mal.

A resolução de puzzles está intrinsecamente associada a uma das mecânicas que certamente se afirmará como imagem de marca. Quando Inside quer, o miúdo encaixa a cabeça num mecanismo e o jogador perde totalmente o seu controlo, passando a controlar seres que parecem desligados, como se estivéssemos perante uma nova estirpe de zombies. Há algo desconcertante em ver o protagonista preso pela cabeça a movimentar as pernas e os braços enquanto é outra entidade que se move pelo cenário.

É um procedimento que evolve, tanto que se dedicarem tempo suficiente acabarão por controlar o protagonista e essas entidades ao mesmo tempo, mas a sua implementação é imaculada. Há outros tipos de puzzles: movimentar caixas, puxar algumas alavancas, zonas sensíveis à pressão que têm que ser calcadas, enfim, até uma zona perto do final do jogo que temos que encontrar e chamar um determinado de amigos para continuarmos o percurso.

Tudo isto para dizer que Inside não é frustrante e certamente não foi pensado para ser um jogo impossível, tal como comprova o local onde são devolvidos ao mundo de jogo sempre que forem apanhados ou morrerem, não perdendo praticamente nenhum do progresso feito. É impressionante a criatividade que uma obra relativamente curta consegue concentrar, sendo um ciclo refrescado constantemente, brotando algo novo a partir do que o jogador já aprendeu e tem como certo.

Seja em que momento for, é fácil notar que Inside é o fruto de um longo trabalho, sendo uma obra polida, ou seja, além de ter cenários pejados de nuances e pormenores e jogos de luz que foram usados para dar carisma a todos os metros do cenário e se conjugam para uma atmosfera imersiva, o design dos níveis consegue transmitir a sensação de progresso e continuidade, com quem joga a sentir que está a viajar até algum lado. Um bom exemplo disso é a inclusão de longas áreas subaquáticas que, além de encerrarem criaturas horripilantes, transmitem o quão pequenos somos perdidos naquela imensidão.

E estas criaturas aquáticas são também a consagração do jogo como uma obra sombria, ou melhor, que leva os jogadores até um estado sombrio. Desde os animais nos momentos iniciais até às multidões de humanos que assistem a um espectáculo – de que nos acabamos por ser protagonistas – no último terço da obra, esta é uma criação que dispensa sorrisos e cores alegres para contar uma história em que tudo vai ficar bem.

Aliás, a narrativa ficou para último no texto porque merece uma menção especial. O final de Inside consegue aquela rara sensação em que à primeira vista não é nada de especial, mas que depois de alguns minutos de reflexão estoura cá dentro como uma castanha que não foi golpeada. Não dá a mão ao jogador na hora de explicar o jogo até então, mas faz um trabalho soberbo a fazê-lo questionar tudo.

É então uma obra como uma grande componente psicológica que, em último caso, coloca em causa quem esteve a controlar a vontade do protagonista e quem afinal controlou a vontade do próprio jogador. O que a Playdead consegue sem recorrer a palavras é instalar o caos na Internet que reparou no jogo e que já elaborou um chorrilho de teorias. É um arco narrativo e um encerramento desafiante e apaixonante – se se se se; então então então então – o que não está ao alcance de muitas obras. Claro que o final alternativo é benzina num palheiro ao sol – mas mas mas mas. Desconfiar que a nossa vontade possivelmente foi manipulada desde o início não é sinonimo de desconfiar que fomos traídos, mas sim contemplar todas as nuances que não tínhamos forma de adivinhar e participar na libertação de uma criatura sem saber o que estávamos a fazer.

Muito fumo e muitos espelhos são colocados ao serviço de guiar o jogador por um vale em que vemos diversas vezes o indivíduo desprovido de personalidade e, se calhar, é ele, o jogador, que através de um miúdo anónimo tem inadvertidamente a maior falta de livre arbítrio. Inside é um dos jogos mais marcantes de 2016 até agora. Pensando na memorável viagem, é como se a Playdead exibisse um cartaz simplesmente a dizer “Espero que saibam”. E nós, depois de Limbo e de Inside, sabemos.

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