A última traição de Durão Barroso

A nova opção de carreira de Durão Barroso encaixa como uma luva na narrativa da extrema-direita e da extrema-esquerda.

Pode ir? Pode. Devia ir? Obviamente que não. A entrada de Durão Barroso na Goldman Sachs, 21 meses após ter deixado a presidência da Comissão Europeia, mostra ainda menos sentido de Estado do que a sua ida para a presidência da Comissão Europeia, dois anos após ter sido eleito primeiro-ministro de Portugal. E prova mais uma vez aquilo que todos já sabíamos desde 2004: a única coisa que realmente preocupa Durão Barroso é o bem-estar de Durão Barroso.

Sem Durão não teria havido Santana, e sem Santana não teria havido Sócrates – não daquela maneira, pelo menos –, pelo que a dívida que o homem já tinha para com Portugal não há ordenado da Goldman Sachs que possa pagar. Agora fica a acumular dívida portuguesa com dívida europeia: o impacto político da sua ida para chairman da empresa em Londres é enorme, e a UE não merecia ter de lidar com mais isto neste momento. Veja-se o que se disse da sua contratação por essa Europa fora, com Marine Le Pen à cabeça, via Twitter: “Barroso na Goldman Sachs: nenhuma surpresa para quem sabe que a UE não serve os povos, mas a alta finança.” É isto que vai ser dito e repetido até à náusea. A nova opção de carreira de Durão Barroso encaixa como uma luva na narrativa da extrema-direita e da extrema-esquerda. Em boa verdade, nem é preciso ir aos extremos. Ana Catarina Mendes mostrou no sábado o que o PS pensa do assunto: “Durão Barroso foi presidente da Comissão Europeia nos piores anos do projeto europeu. E que prémio podia ele ter? Ficar naquela que foi a principal causadora da destruição dos direitos sociais na União Europeia.”

É claro que definir a Goldman Sachs como “a principal causadora da destruição dos direitos sociais na União Europeia” é absolutamente patético e demonstra como hoje em dia a esquerda do PS e o Bloco de Esquerda diferem tanto entre si quanto Dupond e Dupont. Aliás, se o mundo “neoliberal” fosse tão a preto e branco como o pintam, e a Goldman Sachs o Big Brother do capitalismo planetário, certamente que não teria ficado a arder, como ficou, com 834 milhões de dólares no BES. Ninguém passa a perna à Goldman? Pelos vistos, Ricardo Salgado passou. Mas este não é tempo para discutir subtilezas. Bem ou mal, com argumentos exagerados ou não, a verdade é que a Goldman Sachs se tornou numa sinédoque da selvajaria do mercado de capitais, tanto em Portugal como na China. O seu nome é tóxico, e certamente que Durão Barroso lê suficientes jornais para saber isso.

Assim sendo, por que é que aceitou o convite, quando ainda há dois meses apareceu todo pintalegrete no Expresso a exibir o seu magnífico estatuto na Universidade de Princeton? A justificação que desta vez apresentou ao semanário não é menos patética do que as declarações de Ana Catarina Mendes: “É-se criticado por ter cão e por não ter. Se se fica na vida política é porque se vive à conta do Estado, se se vai para a vida privada é porque se está a aproveitar a experiência adquirida na política.” Uma resposta tão medíocre quanto esta é indigna da sua inteligência – e da nossa. Durão Barroso tem consciência das implicações da sua decisão, mas está-se simplesmente nas tintas. Já Passos Coelho, quando se trata de proteger os da sua tribo, parece não ter consciência de coisa alguma: em vez de fazer como António Costa, que se limitou a um desejo irónico de felicidades, optou por uma longa e palavrosa defesa do ex-presidente da Comissão Europeia. Perdeu uma óptima oportunidade para ficar calado.

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