Sanções e carta a Juncker ameaçam ensombrar debate do real estado da nação

À esquerda procura-se realçar as reversões feitas pelo Governo socialista com apoio de BE, PCP e PEV e avisa-se que é preciso mais; à direita faz-se um retrato negro dos resultados da política económica do Executivo de António Costa.

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Costa e Mário Centeno estarão hoje no centro do debate que começa às 15h ENRIC VIVES-RUBIO

Com as atenções da última semana concentradas na ameaça latente das sanções de Bruxelas, nos pedidos de divulgação da carta de António Costa a Jean-Claude Juncker e na situação na Caixa Geral de Depósitos – já com a comissão de inquérito em marcha –, o debate sobre o estado da nação, marcado para esta tarde no Parlamento, irá andar entre duas visões opostas sobre a realidade do país. No confronto que analisa o último ano de governação, PSD e CDS estarão de dedo em riste e munidos de papéis com números negativos para lançar para a mesa; os partidos da “geringonça” irão servir como linha de defesa do Governo.

A direita promete usar indicadores estatísticos para traçar um retrato negro da situação económica e acusar o Governo de desbaratar o esforço dos portugueses durante quatro anos; a esquerda prefere apostar no elogio da reversão de medidas e de políticas de rendimentos e direitos avisando, no entanto, que há ainda um caminho a percorrer no próximo orçamento. Será certo que dos dois lados se usará a estratégia do passa-culpas – o Governo tem-no feito em relação à ameaça das sanções de Bruxelas, o ministro das Finanças fê-lo na terça-feira sobre a CGD, a direita costuma fazê-lo quando lembra a situação em que encontrou Portugal em 2011. No caso das sanções pelo défice excessivo (3,2%) de 2015, o Parlamento rejeitou-as de forma clara em dois projectos de resolução com a assinatura de todos os partidos, mas estes continuam a usá-las como arma de arremesso.

Além das estatísticas económicas e sociais, PSD e CDS vão atacar com outra arma: a carta que o primeiro-ministro enviou a Bruxelas e que o PÚBLICO divulga. A direita acreditava que a missiva poderia incluir algum compromisso ou informação económico-financeira que o Governo não queria, por enquanto, tornar público. À esquerda, os parceiros políticos de Costa dizem todos desconhecer o seu conteúdo. O centrista Nuno Magalhães classifica este comportamento como “teimosia” e desafia Costa, afirmando não querer acreditar que o governante “venha para o debate do estado da nação sem revelar o conteúdo da carta”.

O país vive uma situação política invulgar na sua história: a sessão legislativa da Assembleia da República iniciada na sequência das eleições de Outubro já assiste ao segundo Governo depois de a esquerda se juntar para derrubar o executivo liderado (durante apenas 11 dias em plenitude de funções) por Pedro Passos Coelho com uma das quatro moções de rejeição apresentadas em simultâneo no Parlamento; tem um Governo encabeçado pelo segundo partido mais votado nas eleições, com o apoio de três forças que não lhe garantem, no entanto, absoluta segurança parlamentar.

Neste cenário insólito, António Costa e o PS têm por vezes de navegar à vista para conseguir aprovar medidas – como aconteceu no orçamento rectificativo, por exemplo, por causa da decisão de capitalização e venda do Banif. A "geringonça", como ficou conhecido o acordo PS/BE/PCP/PEV depois de Paulo Portas usar o termo no debate em que a esquerda chumbou o Governo da coligação PSD/CDS (repescado de Vasco Pulido Valente que, no PÚBLICO o usara para definir o PS e as lutas de Costa e Seguro no Verão de 2014) foi-se aguentando ainda que sempre alvo de chacota da direita – ou, como Carlos César chamou a esta última, da “caranguejola”, adoptando o termo usado pelo mesmo Pulido Valente. António Costa ganhou confiança com o termo: “Sim, sim, é geringonça mas funciona”, chegou a atirar à oposição num debate quinzenal. O mesmo Portas classificou Costa, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia com “best friends forever [melhores amigos para sempre]”.

António Costa e o PS têm-se aguentado nas sondagens, como as da Eurosondagem para o Expresso e SIC. Em Novembro, PSD e CDS reuniam 40,8% das intenções de voto e o PS 32,5%; em Junho os primeiros somados conseguiam 38,7% e os socialistas 35,3%. Nos índices de popularidade, em Novembro Costa tinha um saldo positivo de 14,8 pontos (a diferença entra as respostas de avaliação positiva e negativa) e Passos ficava-se pelos 0,5 pontos; no mês passado o primeiro-ministro registava um saldo positivo de 25,7 pontos e Passos de 13,3.

Há um ano, quando o então primeiro-ministro subiu à tribuna para discursar, havia eleições marcadas para daí a três meses. Em jeito de balanço dos quatro anos de legislatura, Pedro Passos Coelho tentou mostrar que cumprira os objectivos a que se propusera ao conseguir a "saída limpa" do programa de ajustamento e traçou um cenário positivo da situação económica e financeira do país. Apesar de nos últimos meses se ter mantido em silêncio em alguns debates quinzenais deixando o palco para o seu líder parlamentar e motivando ironias da esquerda, hoje será Pedro Passos Coelho a questionar António Costa, confirmou o próprio ao PÚBLICO. “Seria muito bizarro que num debate de final de sessão eu não interviesse”, admitiu depois de alguma hesitação.

Melhor, mas é preciso mais

À esquerda, os partidos que assinaram as posições políticas conjuntas com o PS e o Governo vão concentrar atenções nas medidas que reverteram desde que conseguiram uma maioria no Parlamento. De acordo com os deputados ouvidos pelo PÚBLICO, a ideia geral entre BE, PCP e PEV é que o país “está melhor” mas “muito está ainda por fazer” – e é preciso fazê-lo com urgência.

Para avaliar o último ano, a ecologista Heloísa Apolónia considera ser necessário não só olhar para o que foi feito mas também “pensar no estado em que estaríamos e para onde caminhávamos se PSD e CDS se tivessem mantido no poder”. Na área do ambiente realça o travão na construção de barragens e junta-se ao bloquista Pedro Filipe Soares e ao comunista João Oliveira para destacar a reversão dos feriados, das 35 horas na função pública, das privatizações, ou a recuperação de rendimentos com reposição de vencimentos, redução da sobretaxa do IRS, aumento do salário mínimo e de apoios sociais.

O líder parlamentar do PCP avisa, porém, que o país continua a sofrer de problemas estruturais com a emigração, desemprego alto, pobreza, falta de investimento, dependência das regras europeias e défice. “Apesar de tudo, foi possível aprovar medidas positivas. São limitadas e insuficientes, sim, mas não podem ser desvalorizadas”, defende João Oliveira. A intervenção do Bloco vai hoje alicerçar-se neste “património de conquistas, mas consciente de que há desafios pela frente. Apesar das conquistas, há um país que exige mais de nós”, avisa o líder da bancada, Pedro Filipe Soares. PCP e BE prometem, por isso, falar de objectivos futuros, que querem ver no próximo orçamento, na área da educação, da saúde e dos rendimentos.

Carlos César é o motivador no PS. Olhando para os últimos meses, o líder parlamentar socialista admitiu que “não se ignoram as dificuldades, mas também não se viram as costas ao desafio” e não quis antecipar a estratégia para o debate. Sobre a questão da divulgação da carta durante o debate, o socialista, que recusou dizer se a conhece, optou pelo palavreado: espera que o primeiro-ministro “seja circunstanciado sobre as matérias que são mais momentosas”.

Degradação, diz a direita

“Há mais vida para lá das sanções” e por isso o CDS promete basear as suas intervenções de hoje nos indicadores económicos, financeiros e sociais para mostrar que este Governo “desperdiçou o esforço de quatro anos dos portugueses e o país tem agora menos exportações, investimento, emprego e confiança”. E mais problemas, resume o líder parlamentar do CDS. Questionado se não houve alguma medida positiva, Nuno Magalhães recusa ter uma “visão maniqueísta. Mas o balanço na área económica é tão mau que apaga tudo o resto.” Ainda assim, admite uma “pacificação na justiça”.

O vice-presidente da bancada social-democrata acompanha esta avaliação negativa. À Lusa, Marco António Costa realçou que as instituições internacionais têm revelado a “degradação da situação económica e social” em que o Governo de esquerda mergulhou o país depois de ter invertido o caminho de recuperação “construído” por PSD e CDS. Criticou o “discurso de falso optimismo” do executivo que criou “falsas expectativas” aos portugueses e está “permanentemente à procura de desculpas para justificar as falhas na concretização do crescimento económico”.

O debate desta tarde arranca às 15h e durará cerca de quatro horas, cabendo a abertura e o encerramento ao Governo. António Costa irá ausentar-se a partir das 17h45 para cumprir a agenda da reunião semanal com o Presidente da República, às 18h, em Belém.

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