O poder da memória

Benedetti leva-nos mais uma vez para a Montevideu de décadas passadas, num “romance de aprendizagem” em que o espaço da memória convoca as várias etapas da vida.

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A obra do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), composta por mais de meia centena de livros (conto, romance, poesia, teatro, ensaio e crítica literária), é uma das mais importantes da literatura sul-americana do século XX. A sua ficção tem normalmente como cenário a cidade de Montevideu em décadas passadas: uma capital pintada em variados tons de cinzento, habitada pela passividade das gentes que se arrastam numa cidade de amanuenses que morrem de tédio em repartições públicas, pelas suas vidas aborrecidas e pela hipocrisia dos comportamentos, cuja similitude patética dos dias só é interrompida de vez em quando por uma ou outra passagem por cafés ou parques. O mais recente romance traduzido para português, A Borra do Café – os outros livros são A Trégua e Obrigada Pelo Lume (ambos reeditados pela Cavalo de Ferro em 2015) – não foge a esse cenário, embora restringindo o universo sobretudo ao bairro Capurro, “um enclave bairrista”, e ao seu parque, que funciona na narrativa como uma espécie de “Éden mítico” na infância de Claudio, o protagonista (“parecia um cenário montado para um filme de bandidos, com rochas artificiais, pequenas cavernas, caminhos tortuosos e ervas daninhas, enfim, uma maravilha”).

A Borra do Café (originalmente publicado em 1992) é um “romance de aprendizagem” na sua forma canónica, em que o leitor acompanha as fases da vida da personagem desde criança até à idade adulta. Claudio é filho de pais com gostos diametralmente opostos, o que os leva a sucessivas mudanças de casa nos seus primeiros anos de vida, até que se fixam por algum tempo na casa do bairro Capurro. É lá que pela primeira vez Claudio olha para as pernas da sua professora privada e as acha bonitas, é enquanto lá morava que faz incursões com os amigos ao parque (onde encontram morto um famoso sem-abrigo), é lá que o pai lhe anuncia a grave doença da mãe, e é essa casa que tem uma figueira no quintal – que acabará por funcionar como um totem. O espaço neste romance é um lugar fundamental, pois é a recordação desses espaços habitados pela infância e pela adolescência que convoca a aprendizagem do erotismo, do amor, da morte, da tomada (ora mais vagarosa ora mais apressada) de consciência do mundo que o rodeia, das várias vias de aprendizagem pelas quais a personagem passou.

A Borra de Café (título que parece evocar a leitura do futuro pelos restos de café deixados no fundo da chávena) está dividido em 48 curtos capítulos onde é feita a reconstrução da memória de Claudio, que progride em intensidade ao longo do livro numa espécie de reconstituição do indivíduo, de revisão do seu passado, em busca de uma identidade. A acção decorre entre as décadas de 30 e de 50 do século passado – estas datas nunca são referidas mas o leitor chega a elas por referências históricas deixadas no livro: a viagem do dirigível “Graf Zeppelin” sobre Montevideu e o afundamento de um navio alemão durante a Segunda Guerra mundial. A questão da memória e da sua reconstituição em cadeia para chegar a algo não tão subjectivo como as recordações, foram tema de vários livros de Mario Benedetti, que usa o “retorno” (ao mesmo tempo que vai compondo um puzzle diante do leitor) como processo de desbravamento do essencial. E para isso recorre por vezes a jogos de pessoas verbais na narrativa – este romance é contado na 1ª pessoa do singular, mas de vez em quando surge uma voz de 3ª pessoa que também narra, poderá ser um outro narrador, mas fica no ar se não é a 1ª pessoa, a personagem, quem se desdobra numa outra voz numa tentativa de distanciamento, de ser espectador da sua própria vida.

A prosa sóbria de Benedetti, tão característica do seu estilo, narra uma história realista (mas pontuada em vários episódios decisivos pela menção a uma hora “mágica”: as três e dez da tarde; o elemento de conexão entre o tempo e as circunstâncias) que no último capítulo se transforma em onírica e com elementos que por momentos poderão evocar o “realismo mágico” ou o fantástico: Claudio viaja de Montevideu para Quito, no Equador, para participar numa reunião profissional, numa companhia aérea que ninguém conhece, a Aleph Airlines, e já durante o voo o comandante anuncia que se dirige para Mictlán. Ora, a referência ao Aleph remete de imediato para o livro homónimo de Borges – em que as histórias têm como tema o sentido e o significado do tempo, o enigma do Universo e a compreensão da eternidade, a transcendência da palavra – e Mitclán é o nome do reino dos mortos nas culturas pré-colombianas. Mario Benedetti sublinha assim as relações entre a vida e a morte na reconstituição da vida de Claudio.

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