Michael Cimino (1939-2016), um realizador entre o Céu e o Inferno

Um dos grandes líricos do cinema americano, teve Óscares por O Caçador, mas tem o seu nome impresso com as letras gigantes de uma catástrofe: As Portas do Céu (Heaven’s Gate, 1980).

Michael Cimino tinha 77 anos
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Michael Cimino tinha 77 anos GABRIEL BOUYS/AFP
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Michael Cimino tinha 77 anos Miguel Silva/Arquivo
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Kris Kristofferson e Isabelle Huppert em Heaven's Gate
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A paisagem americana como um santuário: Heaven's Gate
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O Caçador", Óscar para melhor filme
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Cimino com Robert De Niro na rodagem de O Caçador
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Michael Cimino, melhor realizador por O Caçador e Jane Fonda, melhor actriz por Coming Home: dois fimes rivais sobre o Vietname
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Michael Cimino tinha 77 anos GABRIEL BOUYS/AFP
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Michael Cimino tinha 77 anos Miguel Silva/Arquivo

Morreu Michael Cimino, vencedor de um Óscar de Melhor Realizador por O Caçador. Ou teria sido o homem que, com As Portas do Céu, ajudou a fechar com estrondo os 70s e a acabar com o sonho da Nova Hollywood? Teria 77 anos - a sua idade e alguns factos da vida são incertos, mantidos numa zona de mistério ou ocultados pelo próprio.

O anúncio foi feito no sábado, no Twitter, pelo director do Festival de Cannes Thierry Fremaux: “Michael Cimino morreu, em paz, rodeado dos seus e das mulheres que amava. Nós também o amávamos.” Eric Weissmann, amigo e ex-advogado do realizador, confirmaria a morte. Mas segundo o The New York Times, que o cita, o corpo terá sido encontrado na sua casa de Los Angeles, sábado, pela polícia, que foi contactada por amigos do realizador quando não o conseguiram contactar por telefone. A causa da morte, segundo Weissmann, está ainda por determinar.

Apesar do sucesso com O Caçador (1978), história de amigos operários da Pensilvânia e das suas perdas com a experiência da Guerra no Vietname (nomeações para nove Óscares, vencedor de cinco, entre os quais o de melhor filme, "batendo" O Regresso dos Heróis, de Hal Ashby, visto como adversário ideológico), Cimino levaria à falência o estúdio da United Artists com As Portas do Céu (Heaven's Gate, 1980): filme "maldito", um dos fracassos de bilheteira de maiores consequências para o cinema americano. Não terá sido, na verdade, "apesar de...". Uma coisa, o sucesso de O Caçador, levou à outra: com a indústria a seus pés, teve carta branca, e 12 milhões de dólares, para entregar até ao Natal de 1979 o seu filme sobre o conflito sanguinário, nas terras do Wyoming dos anos 1890, entre barões do gado e colónias de imigrantes, entre a lei e o vigilitantismo.

Entregou-o quase um ano depois, 40 milhões de dólares depois, mas quando o filme chegou às salas já estava desapossado da sua possibilidade de ser "um filme". Já se tornara media event. E foi como se as salas o expelissem. Todo o espectáculo da rodagem, os adiamentos da estreia, os comentários sobre as excentricidades de Cimino, que queria ter o nome no genérico do tamanho do título do filme (e assim ficou com o nome pegado à dimensão desse desastre), foram antecipando com ironias amargas e slogans espirituosos (To Hell with Heaven’s Gate; Apocalypse Next) aquilo que se seguiu.

Eclipsaram-se os 70

O desastre anunciado confirmava-se: uma semana em exibição numa sala de Nova Iorque, a crítica a ditar o "unqualified disaster" (Vincent Canby no The New York Times...) desta versão original de 219 minutos (seria retirada, para segunda distribuição em versão mais curta, que só tornaria a comunicação emocional ainda mais difícil) e o filme a ser apontado por todos, e entre eles muitos que não o tinham visto, como exemplar da megalomania dos tempos em que Hollywood estivera à mercê dos "autores". Cimino ajudou a ditar com esse fracasso o fim de uma era, o fim dos sonhos da geração dos movie brats, foi isso que lhe aconteceu.

Podia ter acontecido com Coppola (Do Fundo do Coração, 1981), com William Friedkin (Sorcerer, 1977), com Spielberg (1941, Ano Louco em Hollywood, 1979), com Peter Bogdanovich (They All Laugued, 1991), que tiveram os seus fracassos dolorosos. Mas, independentemente do efeito deles na vida dos seus autores (a Zoetrope de Coppola, por exemplo, faliu...), o grande estrondo aconteceu com Cimino e aconteceu a Cimino. As Portas do Céu parecia trazer, em si, aliás, uma premonição. Como se recebesse e abraçasse a catástrofe. Tudo começa, se se lembram, na Harvard do século XIX, com dois amigos, James Averill (Kris Kristofferson) e William Irvine (John Hurt), no rodopio de valsas de Strauss e de entrega de diplomas à elite estudantil de que fazem parte. É então que a personagem de Hurt diz: "Os anos 1870 acabaram!".

Há-de haver um corte, e o prólogo em Harvard, momento de ideais e de esperança, dará lugar à impotência, ao niilismo… sentimentos inescapáveis face à personagem de Kris Kristofferson, que vemos agora no comboio a caminho do Wyoming 20 anos depois da sua formação em Harvard, impregnado de malaise. (Está tudo nessa passagem, como no "corte" que nos transportava de forma abrupta da Pensilvânia para o Vietname em O Caçador — as elipses que essas obras contêm são feridas no tecido dos filmes, a alastrar, a consumi-los). Pois bem, Heaven's Gate e o seu fracasso alastraram, e acabaram por dizer: "Os anos 1970 acabaram!".

É verdade: pouco tempo depois, duas semanas apenas, da estreia começava a era Reagan. Deixaria de haver tolerância para visões lúgubres de uma América fundada não sobre um qualquer abraço fraterno mas sobre o genocídio, a guerra de classes e o racismo. Em 2012, por alturas da edição em DVD do filme, em cópia que restaurava a versão original, Kris Kristofferson dizia ao The New York Times que a visão de Heaven's Gate sobre o capitalismo americano esteve na origem de um verdadeiro “assassinato político". Kristofferson lembrava-se de que o attorney general de Reagan, William French Smith, mandou recados aos chefes dos estúdios de Hollywood: "Não deveria haver mais filmes com uma visão negativa da história da América". E no documentário Final Cut: The Making and Unmaking of Heaven's Gate explicita: tudo não foi mais do que uma estratégia dos "poderes instituídos" para acabar com uma forma de fazer cinema.

Eclipsaram-se os anos 70 (uma década depois do “we blew it” de Easy Rider, pronunciado em 1969). Desapareceu a Nova Hollywood, substituída pelas corporações (mas não desapareceram os filmes que ultrapassam orçamentos...). E Cimino foi definhando com O Ano do Dragão (1985), O Siciliano (1987), Desperate Hours (1990) e The Sunchaser (1996), com rasgões de beleza mas quase sempre tolhido.

"Não tem graça ser famoso pelas piores razões: torna-se uma ocupação esquisita", dizia, em 2012, no Festival de Veneza, antes de o director Alberto Barbera lhe entregar o Prémio Persol que reconhecia "uma das mais intensas e originais vozes do cinema americano". Nessa altura, procedia-se a uma revisão de Heaven's Gate. Que nos últimos anos tem sido descoberto enquanto filme, para além de media event, já que esteve sempre como que inacessível, impossibilitado de, nas coisas belíssimas que tem e nas suas dificuldades - a problemática coabitação entre o monumental e o íntimo -, poder dar a ouvir, enfim, a vibração trágica do seu trio: Averill (Kristofferson)/Ella (Isabelle Huppert)/ Nathan (Cristopher Walken) - e como todo ele é uma deflagração de fragilidade, Chris Walken…

Lirismo e destruição

Tudo começara antes, como se disse. Naqueles anos de euforia, em que Hollywood descobria um wonder boy. Os anos de O Caçador. O ressentimento desenvolvia-se nessa altura: na muito emotiva e electrizante noite desses Óscares, Jane Fonda, premiada como melhor actriz por Coming Home, confrontava o realizador nos bastidores por ter feito um filme "racista, a versão do Pentágono da guerra" do Vietname. (Mas parece que nem tinha visto o filme). Duas sequências provocavam a divisão (porque, acredite-se ou não, houve quem o considerasse o melhor filme anti-guerra desde A Grande Ilusão, de Jean Renoir): a da roleta russa, no Vietname, a suposta prova do racismo do realizador, e a do hino americano, em "casa", a suposta evidência do seu paroquial patriotismo.

Fora do Dorothy Chandler Pavillion, Os Veteranos do Vietname contra a Guerra faziam piquete. O facto de ter sido John Wayne — última aparição pública, já minado pelo cancro — a entregar o Óscar de melhor filme a O Caçador, parecia autorizar todas as leituras de uma simbólica passagem de testemunho. Até porque se começava a explorar supostas incongruências biográficas do realizador (a sua idade, a veracidade do seu currículo académico e do que ele tinha apresentado como "esforço de guerra"...). Wayne era, ele próprio, autor de um pedaço de propaganda bélica, Os Boinas Verdes (1968), e tinha sido convidado por Cimino para uma primeira projecção do filme. No final da qual teria exclamado: "Isto vai mostrar a alguns filhos da puta como se vive na América".

O "boneco" estava feito. Cimino ia desautorizando leituras políticas do filme, reafirmando que não era sobre uma guerra justa ou injusta, era um filme sobre as experiências de pessoas que conheceu, um canto, um lamento, sobre "gente vulgar deste país que viajou das suas casas para o coração das trevas e voltou". Mas não o ouviam, e a sua personalidade trazia anti-corpos ao discurso. Conservador? Sim, tal como John Ford - um dos seus cineastas de cabeceira - quando cantava a América. A crítica Pauline Kael referiu-se assim a The Deer Hunter e tocou no essencial: "Um filme tacanho com grandeza dentro... uma obra espantosa... com uma visão extasiada da vida normal — a poesia do banal." (Se John Ford está na alma de O Caçador, Sam Peckinpah, outro dos heróis de Cimino, está no horizonte de As Portas do Céu, mas se calhar cada filme do cineasta vive sempre no caminho entre esses dois gigantes líricos, e do caminho do idealismo para a destruição).

Michael Cimino nasceu em Nova Iorque, descendente de italianos. Estudou em Yale, mas as suas habilitações académicas foram alvo de "dúvidas", fazendo-se sempre da personagem uma figura "suspeita" de se ficcionar. O que ajudou à "guerra", por exemplo, quando se tratou de atacar a "veracidade" de O Caçador. Fez anúncios de televisão. Iniciou a carreira em Los Angeles como argumentista— o seu currículo, O Cosmonauta Perdido (1972) e o segundo filme da série Dirty Harry, Magnum Force (1973). Antes de O Caçador realizou A Última Golpada/Thunderbolt and Lightfoot (1974), com Clint Eastwood, com quem assinou o argumento. Já aí estava a paisagem americana como reservatório mitológico que faz a sua cobrança, em tragédia, a quem lá entra, a quem a atravessa.

Raramente dava entrevistas, e durante os anos que seguiram ao desastre de As Portas do Céu recusou-as. Em 2001 publicou o seu primeiro romance, Big Jane. Nesse ano, o Ministro da Cultura francês distinguiu-o com a medalha de Chevalier des Arts et des Lettres. Megalómano? Foi um dos grandes do cinema americano e uma das suas grandes "baixas". Em 2010, aceitou viajar com um historiador e crítico de cinema francês, Jean Baptiste Thoret, pelos "lugares" dos seus filmes — o Colorado com as suas primeiras neves, os céus imensos do Montana, o Wyoming. Teve a sua catedral, tal como John Ford teve Monument Valley. Resultou num livro esta longa conversa sobre a perda, sobre os ideais que tombam, sobre os "novos" sacrificados pelos "velhos". Veja-se esta passagem e o que ela pode encerrar: "No final, é sempre a mesma coisa, a traição dos idealismos de juventude pelos mais velhos: os velhos acabam por ganhar, em todas as guerras, em todos os países, em todos os períodos da história. E os velhos justificam isso contando tretas: os jovens desencadeando as catástrofes e eles ficando para limpar a casa". É um comovente road book, Michael Cimino, Les Voix Perdues de l'Amérique (Flammarion, 2013). A dele já se tinha perdido, nunca se reencontrou. No final do seu Dicionário Biográfico de Cinema, David Thomnson terminava a sua entrada sobre o realizador: "Cimino é um monstro e enquanto ele viver temos de estar preparados para lhe ceder terreno, ou abatê-lo."

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Michael Cimino não acha graça a "ser famoso pelas piores razões"

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