Miguel Relvas perde a licenciatura por decisão de tribunal administrativo

Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa considerou nula a licenciatura atribuída ao ex-ministro do PSD.

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Processo sobre legalidade da licenciatura estava pendente desde o Verão de 2013. Foto: Miguel Manso

O Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa considerou nula a licenciatura atribuída ao ex-ministro Miguel Relvas pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT), confirmou ao PÚBLICO o juiz presidente daquele tribunal, Benjamim Barbosa. Tal significa que as irregularidades existentes naquele processo eram tão graves que, em termos jurídicos, a licenciatura nunca chegou a produzir efeito. Em termos práticos, quer dizer que Miguel Relvas perde o grau de licenciado.

O processo sobre a legalidade da licenciatura de Miguel Relvas estava pendente no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa desde o Verão de 2013.

A TSF foi a primeira a avançar com a notícia, afirmando que a juíza deu razão aos argumentos do Ministério Público. Foi este organismo, aliás, que pediu a nulidade da licenciatura, depois de a Inspecção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) ter percebido, em 2012, que Relvas tinha feito uma disciplina (Introdução ao Pensamento Contemporâneo) apenas com base na discussão oral de sete artigos, da sua autoria, publicados em jornais, sem qualquer outro exame.

Essa forma de avaliação não respeitava os regulamentos gerais da universidade em vigor no ano lectivo de 2006/2007, altura em que Relvas frequentou a Lusófona, e que obrigavam à realização de um exame escrito. A análise dos inspectores acabaria por ser enviada para o Ministério Público, que, por sua vez, desencadeou a acção judicial contra a Lusófona, tendo como “contra-interessado” Miguel Relvas — o conceito de contra-interessado define, basicamente, alguém que pode ser prejudicado caso uma determinada acção tenha procedência.

Sendo certo que não foram cumpridos os “formalismos previstos no regulamento avaliativo”, como se lê na sentença de 40 páginas do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que tem a data desta quarta-feira, não é, contudo, por causa dessa disciplina de Introdução Pensamento Contemporâneo que a juíza Isabel Portela Costa decide agora declarar nulo o acto de atribuição do grau de licenciado a Miguel Relvas.

A razão principal está na forma como a universidade atribuiu alguns dos créditos que considerou que Relvas tinha direito depois de analisar o seu currículo profissional. Lê-se na sentença: “Miguel Relvas não reúne o número de créditos suficientes” para completar os 180 necessários à obtenção do grau de licenciado, não podendo a universidade “certificar, como o fez, que este aluno concluiu o curso de licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais com a classificação de 11 valores pela conclusão de seis semestres equivalentes a 180 créditos".

Duas "cadeiras" não estavam no plano

Relvas concorreu à Lusófona em 2006. Um ano depois foi-lhe conferido o diploma de licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais, cujo plano de estudos era constituído por 36 "cadeiras", o que correspondia a 180 créditos — que é, em geral, o número de créditos que compõem uma licenciatura.

Na altura em que Relvas se candidatou, o sistema de creditação de competências profissionais e académicas em vigor não previa limites para os créditos que um aluno podia receber. Este regime legal permitia que a experiência profissional e académica de alguém que se candidatasse a um curso superior pudesse ser avaliada tendo em vista a obtenção de créditos, o que na prática significa poder ter equivalência a certas disciplinas, ficando dispensado de as fazer. Só uma alteração à lei feita em 2013, já depois do espoletar deste caso relativo a Miguel Relvas, passou a impor limites.

À Lusófona, Relvas apresentou-se com um currículo profissional que incluía ter sido consultor de várias empresas, secretário de Estado no XV Governo, várias vezes deputado na Assembleia da República (fora eleito pela primeira vez com apenas 24 anos) e presidente da assembleia geral da Associação de Folclore da Região de Turismo dos Templários, entre várias outras actividades e cargos.

Numa carta dirigida ao então reitor da universidade (e também director do curso), Fernando dos Santos Neves, o candidato pedia que este se dignasse a apreciar o seu percurso, “tendo em vista eventual reconhecimento” para efeito de equivalências, como permitia a lei.

Santos Neves e outro professor (José Feliciano, um doutorado em Antropologia Social) entenderam que o percurso profissional de Relvas valia 160 dos 180 créditos necessários para fazer a licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais. Pelo que o aluno só teria de fazer quatro das disciplinas do plano de estudos para se licenciar.

Relvas, a quem foi atribuído o n.º 20064768, inscreveu-se então, para o ano lectivo 2006/2007, em Teoria do Estado, da Democracia e da Revolução; Geoestratégia, Geopolítica e Relações Internacionais; Quadros Institucionais da Vida Económico-Político-Administrativa e Introdução ao Pensamento Contemporâneo (cuja regência pertencia ao reitor que o avaliou com base nos artigos de jornais). O certificado de conclusão do curso foi-lhe emitido em Outubro de 2007 e dele constam as disciplinas que fez, e a que foi aprovado, e todas as outras a que teve equivalência depois de lhe serem atribuídos créditos.

Só que, lê-se na sentença desta quarta-feira, duas disciplinas a que Relvas teve equivalência (a saber, Teoria Políticas Contemporâneas e Teorias Políticas Contemporâneas II) “não integravam qualquer dos planos de estudos de qualquer um dos cursos em que fosse possível que um aluno se matriculasse na ULHT no ano lectivo de 2006/2007”.

Ou seja, diz a sentença, essas duas disciplinas, que valem 10 créditos, “não podiam concorrer para a obtenção do grau académico de licenciado”.

“Na medida em que admitiu que essas unidades curriculares compunham a licenciatura” e “em que as levou em linha de conta para o reconhecimento ou atribuição do grau de licenciado, o acto que reconheceu a licenciatura em causa a Miguel Relvas, materializado no certificado de habilitações que foi emitido, é de objecto impossível" e "como tal, é nulo”, remata a sentença.

Já os problemas detectados na avaliação a Pensamento Contemporâneo não são considerados tão graves pelo tribunal. O Ministério Público alegava, entre outros, que a falta de uma prova escrita ou oral tornava nula a avaliação feita ao aluno na disciplina de Introdução ao Pensamento Contemporâneo. O tribunal administrativo entende que tal não constitui um "aspecto decisivo do acto avaliativo ou um vício de tal modo grave que o princípio da legalidade não possa conviver com ele".

Por isso, “a invalidade verificada já não pode ser invocada porque o acto de avaliação de Miguel Relvas na unidade curricular de Introdução ao Pensamento Contemporâneo, correspondente a 5 ECTS [créditos], já se consolidou na ordem jurídica por ter decorrido o prazo para a respectiva impugnação”.

Despacho do reitor é nulo

A 12 de Julho de 2012, com a polémica sobre o curso de Relvas a ser debatida nos jornais, o então ministro da Educação Nuno Crato pediu à IGEC para fazer uma auditoria à Lusófona e verificar como estavam a funcionar os procedimentos de atribuição de créditos aos alunos.

Três meses depois, Nuno Crato ordenou à universidade para que, em 60 dias, apreciasse “todos os processos” de creditação de competências de alunos conduzidos desde 2006, “retirando dessa reanálise as consequências devidas, incluindo, quando for o caso, a declaração de nulidade dos graus atribuídos”.

Em Dezembro de 2012, e face aos relatórios da IGEC, a Lusófona aprovou um regulamento pedagógico que permitia ratificar a avaliação feita a Relvas anos antes e o actual reitor da universidade, Mário Moutinho, assinou um despacho onde declarava definitivamente sanados os vícios relativos à avaliação daquele aluno na unidade curricular de Introdução ao Pensamento Contemporâneo.

O tribunal entende agora, na sentença emitida nesta quarta-feira, que esse despacho do reitor “padece de vício de violação de lei por estar a fazer uma aplicação retroactiva de um regulamento”. Foi mais um dos pontos em que a juíza deu razão ao Ministério Público.

A 4 de Abril de 2013, recorde-se, o ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares apresentou a demissão do Governo. Alegou “falta de condições anímicas” para continuar a exercer funções. Duas horas e meia depois, o gabinete de Nuno Crato emitia um comunicado onde informava que a licenciatura de Relvas seguia para o Ministério Público.

Pode haver recurso

Tanto Miguel Relvas como a Universidade Lusófona têm a possibilidade de recorrer da decisão tomada esta quarta-feira, para o Tribunal Central Administrativo do Sul. O próprio Ministério Público, que viu uma parte da sua tese rejeitada pela juíza do TAC de Lisboa, poderá recorrer relativamente aos aspectos em que foi vencido.

Contactada pelo PÚBLICO, a Universidade Lusófona faz saber, por escrito, que "não tem quaisquer comentários a fazer a propósito de quaisquer decisão judicial e que obviamente respeitará sempre as decisões dos tribunais, neste como em qualquer outro caso". Não foi possível até ao momento obter um comentário de Miguel Relvas.

Em Dezembro de 2014, o Ministério da Educação determinou que a ULHT deveria, no prazo de 60 dias, declarar, em 152 outros processos de alunos, a nulidade dos actos de creditação (o que em muitos casos significava que deixariam de ter o grau de licenciado ou mestre). Em meados do ano passado, o Executivo emitia um comunicado onde informava que a maioria dos afectados manifestaram vontade de reingressar nos ciclos de estudos para concluir a sua formação e regularizar a sua situação académica.

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