Dona de casa asfixiada por electrodomésticos

Inspirada pelo universo cinematográfico de David Lynch, a actriz e encenadora belga Morgane Choupay faz de Housewife um delírio grotesco revelado a partir de uma cozinha hi-tech.

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Ela faz as apresentações na qualidade de dona de casa pequeno-burguesa: este é o Calor, ar condicionado; o Electrolux, aspirador; a Philips, uma batedeira; a Braün, claro, a liquidificadora; e não esquecer a Krups, máquina de café, mais o Bosch, fiel fogão. “Ela tem tudo. Ela tem absolutamente tudo”, diz ela – falando de si. Esta mulher, com um penteado que desafia com brio a lei da gravidade, uma espécie de doméstica perfeita largada no seu paraíso algures nos anos 60, está treinada na sua rotina diária para começar a esperar pelo marido no momento certo – se começa a esperar demasiado cedo, terminará de esperar antes que ele chegue e, nesse caso, ele entrará em casa atrasado; se ele chegar antes que ela termine de esperar, nesse caso invadirá grosseiramente o espaço dela.

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O texto da autora holandesa Esther Gerritsen – já encenado e interpretado em Portugal por Raquel Castro – é, como não custa a perceber, um vómito do papel preparado para a mulher nos subúrbios americanos do american dream, mas também um regurgitar de uma sociedade que aprendeu a organizar a sua vida em redor de bens de consumo e de marcas glorificadas como melhores amigas da actividade doméstica. Daí que Housewife, nesta versão levada a palco pela actriz belga Morgane Choupay e com o duo Ployboy (no Festival de Almada, Escola D. António da Costa, a 13 de Julho), feche toda a acção numa cozinha hi-tech, capaz de ganhar vida e transformar o idílio da dona de casa num pesadelo grotesco e sombrio, animado por uma pequena e inebriante sinfonia de electrodomésticos.

Morgane Choupay chegou ao texto de Gerritsen através de Raquel Castro. As duas conheceram-se na edição de 2013 da Écoles des Maitres, dirigida pela coreógrafa argentina Constanza Macras, e da vontade espontânea de trabalharem juntas surgiu o repto de cada uma montar a sua versão de Housewife com a possibilidade, ainda em aberto, de poderem juntar no futuro os dois olhares sobre o texto. “Uma vez o texto traduzido”, diz Choupay ao Ípsilon acerca da sua decisão de se juntar ao duo musical Ployboy, “não concebia encená-lo sem um universo sonoro que fosse tão importante quanto o trabalho de actriz. Porque os objectos ganham verdadeiramente relevância, muito mais até do que quaisquer outras figuras humanas.”

Tomando por inspiração a peça de John Cage 27 Sounds Manufactured in a Kitchen, Choupay procurou David Chazam por acreditar que o músico “podia produzir um delírio de música electro-acústica que fosse, ao mesmo tempo, um pouco retro”. Chazam levou consigo Val Macé, “um mágico das máquinas, que faz mesmo música a partir de objectos concretos”. Foi a partir deste encontro a três que Housewife começou a desenhar-se e a encontrar no texto ecos de um universo que a actriz ligou de imediato à sua memória de Blue Velvet, filme modelar do universo lynchiano.

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A ligação a David Lynch funcionou como uma lupa colocada sobre toda a bizarria da peça de Gerritsen. A estranheza passou a ter uma figura de fantasia disforme depois de Morgane ter assistido a uma projecção de Blue Velvet e perceber como havia um mundo maniqueísta a rebentar na cabeça da sua protagonista, manchando de falsidade e de “vício profundo e degradante” o cenário branco, limpo e imaculado em que aquela vida estava plantada.

“Acho que esta Housewife encarna as duas versões da mulher de Blue Velvet: uma Laura Dern ridiculamente perfeita, e uma Isabella Rosselini como ser sexual mas completamente perdido, uma mulher maltratada e que tem necessidade de ser espancada para obter o seu prazer.”

São todos objectos

Ao lado de Morgane Choupay, que progressivamente se desfaz da imagem de dona de casa desenhada para um programa de televendas, estão sempre os dois Ployboy, vestidos como fantasmas ou, melhor ainda, como corpos que são invólucros vazios. Choupay argumenta que os rapazes “encarnam várias coisas, entre as quais homens-objecto”. Afinal, em Housewife, este mundo gira sempre em torno de objectos. “Como se fosse uma relação masoquista”, acrescenta a actriz e encenadora, “tal como ela possui tudo aquilo é ao mesmo tempo possuída por esses objectos. São eles que activam o seu mundo interior.”

Não nos enganemos, no entanto, em relação ao fosso que aparentemente se cria entre o delírio fantasista e excessivo de Housewife e o mundo lodoso das marcas em que estamos metidos até ao pescoço. Morgane cita os iPad como exemplo óbvios de objectos que possuem o seu possuidor e, olhando-se dos ombros aos pés, identifica os seus ténis Adidas, assim como as marcas da sua mala e do seu vestido. “Também acabo por ser identificada por isto, pode dizer-se a que classe social pertenço com base na observação destes elementos”, queixa-se. “É lamentável que nesta corrida cheia de pressão para existirmos acabemos despossuídos.”

Morgane lembra então que quase todas as cidades do planeta têm uma rua consagrada à presença das mesmas lojas, terminando na glorificação máxima de uma catedral-centro comercial, para onde se dirigem infindáveis peregrinações de fim-de-semana, “um acto de liberdade e ao mesmo tempo um acto de consumismo que dá a impressão de se cumprir uma vontade”. Tratando-se de uma escolha livre, parece reproduzir apenas um gesto condicionado, em zonas pensadas para estimular esse repetido momento de compulsão através da compra de objectos. Ao lado do café de Bruxelas onde nos encontramos, no meio de uma correnteza de lojas, há a entrada para um casino que, nesse sentido, muito pouco difere do oferecido pelas restantes portas.

Housewife mostra também o lado terrífico de uma mulher que é deixada sozinha com a sua razão, num espaço de reflexão que se torna ameaçador e a coloca diante da loucura, perante a ideia de que para corresponder a um padrão social, num sentido extremo, ela tenha de prescindir em absoluto de si mesma. Uma outra mulher objecto (sem o carimbo sexual da sua exploração mediática), um corpo que se empolga com a visita de uma vendedora de produtos porta a porta e se excita com um programa de lavagem da máquina da roupa. Debaixo de toda a bizarria, encontramos a absoluta fragilidade da solidão e da dependência, a espera desesperada por um cowboy salvador, uma mulher que se coloca entre a vida e a morte.

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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