Nuvens negras sobre a Europa

O debate eternamente adiado sobre o caminho a seguir far-se-á agora à força e nas piores condições.

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As ondas de choque vão perdurar por muito tempo. O tempo necessário à Europa para jogar o seu destino. Duas correntes fortíssimas vão enfrentar-se, agora sem qualquer disfarce, para moldar o futuro da Europa no século XXI. Aquela a que a saída britânica vai dar uma vida nova e que já se manifesta na grande maioria dos países europeus, influenciando a sua agenda: uma mistura tóxica entre rejeição da globalização, rejeição da Europa, rejeição do outro. Marine Le Pen abriu certamente uma garrafa do melhor champanhe francês porque sabe que a partir de agora os ventos do populismo vão soprar ainda mais a seu favor. Mas também os seus amigos alemães, austríacos, suecos, holandeses ou, olhando para lá das fronteiras da União, aqueles que apostam no regresso do nacionalismo como arma para aumentar a sua influência e o seu poder. O efeito dominó, de que tanto se falou, vai ser agora muito mais difícil de travar. Le Pen e os seis amigos têm agora o melhor dos pretextos para pedir uma idêntica possibilidade de escolher democraticamente, dando a palavra ao povo. Aumentará, por isso mesmo, a volatilidade da paisagem política europeia.

Do outro lado – e é este o lado verdadeiramente decisivo – os governos europeus que conseguiram silenciar durante anos um debate a sério sobre o futuro da União Europeia que diga alguma coisa aos seus povos, centrando-se nos seus interesses internos e eleitorais. Brincaram com o fogo, ignorando a opinião pública, abrindo as portas a qualquer desastre inesperado, que não conseguiam sequer antecipar, mesmo que os sinais fossem evidentes. O debate eternamente adiado sobre o caminho a seguir far-se-á agora à força e nas piores condições, porque os sinais errados foram dados levianamente para ganhos eleitorais imediatos. Mas aqui a unanimidade também não existe.

Haverá, como há sempre na União Europeia, aqueles que ainda pensam que tudo se resolve com um pequeno grupo de países que estão dispostos a acelerar a integração europeia, sobretudo à volta da Alemanha e da zona euro. O problema é que hoje esta velha e cómoda ideia envelheceu. Em primeiro lugar, porque já não é bem essa a vontade que domina os respectivos povos. Na Alemanha, em Itália, França, Holanda, Bélgica, Espanha ou Portugal, a ideia de uma maior partilha de soberania pode agradar às elites, muito dificilmente agradará aos povos. É o preço das sucessivas crises e das respostas quase nada europeias que lhe têm sido dadas. A saída do Reino Unido tem, aliás, um efeito pouco salientado mas importante: retira a alguns governos europeus o eterno e muitas vezes falacioso pretexto britânico para não fazerem mais.

No centro desta tendência unificadora está naturalmente a Alemanha – quase tudo depende dela e agora ainda muito mais. E devia estar também a França, onde o vazio de poder no Eliseu se manifesta cada vez mais claramente e onde os partidos do sistema estão profundamente divididos sobre o futuro da França e do seu lugar na Europa, sem capacidade de reacção, quanto mais de liderança. De resto, neste núcleo duro de países ricos, a resposta ao desafio britânico também não é comum. A Holanda, por exemplo, quer avançar naquilo que designa por um caminho “reformista”. Mas o “reformismo” do seu Governo e da sua opinião pública está mais próximo do de Londres do que, porventura, de Berlim ou de Paris. É a favor de mais soberania para as democracias nacionais, com a respectiva devolução de funções que dispensam o nível supranacional. O eterno discurso sobre “mais Europa” enfrenta agora o seu momento de verdade. Mais Europa como? Pode ser que o choque britânico venha a acordar os responsáveis políticos europeus. Mas todos os sinais de que hoje dispomos ainda não são de forma nenhuma convincentes. As divisões, a falta de confiança mútua, a falta de coragem política, as vistas curtas apoderaram-se da Europa num grau demasiado elevado para alimentar algum optimismo.

O problema não é só de entendimento interno. Uma pequena Europa rica à volta da Alemanha e com a França a “legitimar” Berlim teria duas gigantescas desvantagens. Primeiro, o poder alemão cresceria por ventura demasiado face aos seus parceiros europeus, perante uma França enfraquecida e ao faltar-lhe o verdadeiro poder equilibrador do Reino Unidos. Hoje, num mundo onde se afirmam grandes pólos de poder – para além dos Estados Unidos, a China, a Índia, o Brasil, a própria Rússia (ainda que em inevitável declínio mas com um arsenal nuclear demasiado grande) – a dimensão conta e a geopolítica ainda mais. A Europa tem de ter dimensão e tem de ter estratégia. Ficar sem os ingleses retira-lhe um elemento essencial para a sua afirmação. Uma “pequena” Europa do euro (e que euro?) mesmo com a Alemanha ou apesar da Alemanha, só muito dificilmente não conseguiria afirmar-se.

Ontem, quinta-feira, António Vitorino na Antena 1 ainda recorreu à célebre frase de Mark Twain, sobre o anúncio da sua morte manifestamente exagerado. Acrescentou o ex-comissário que isso não queria dizer que os problemas não fossem muito sérios. A irresponsabilidade dos políticos britânicos arrisca-se a ser uma doença capaz de atravessar a Mancha. As luzes ainda estão longe de se apagar na Europa. Mas não vale a pena subestimar a saída do Reino Unido.

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