Um congresso desobediente

Parece bloqueado, mas sistema político nos EUA dá sinais de vitalidade

Até nos países com sistemas políticos bem definidos e imutáveis, como é o caso dos EUA, há sinais de transformação perante o acomodamento das instituições ou face à resistência de poderosíssimos lobbies instalados, que não querem abdicar dos seus privilégios… ou dos seus imensos lucros. Talvez por isso, tem-se assistido nos anos mais recentes, a uma certa fragilização do bipartidarismo tradicional primeiro através do movimento Tea Party e, agora, na campanha presidencial com o aparecimento de candidatos que são mais outsiders do que figuras verdadeiramente representativas do establishment político de qualquer um dos partidos, Democrata ou Republicano. Verdadeiramente relevante, é ainda o facto desses intrusos terem obtido grande apoio popular na corrida à nomeação para a candidatura à Casa Branca, prova da desconfiança dos eleitores nos poderes instalados, nas regras estabelecidas e nas políticas tradicionais. Dantes, nada escapava ao controlo das duas grandes forças políticas, mas agora os democratas tiveram que “engolir” o primeiro candidato socialista que consegue chegar às portas da Convenção com sucesso considerável, enquanto os republicanos viram um radical de direita atirar ao tapete uma a uma, todas as figuras mais ou menos institucionais que se lhe opuseram. O incómodo é tanto que, nesta altura, ainda não se sabe se ao certo se Donald Trump será ou não o candidato do partido Republicano às presidenciais de Novembro. Quando as regras não servem, mudam-se as regras e Paul Ryan já deu o mote que pode servir de inspiração aos delegados na convenção de Julho. Quanto aos democratas, a força de Hillary Clinton conseguiu poupá-los ao incómodo de um Bernie Sanders cujo discurso não podia ser mais disruptivo da mensagem corrente do partido, mas só o tempo dirá se alguém tomou boa nota da surpreendente mobilização à volta da candidatura do velho Bernie, sobretudo da parte do eleitorado jovem.

É curioso como estes sinais de mudança oriundos sobretudo de fora do sistema e em oposição a ele, se deslocaram subitamente para o seu interior através de uma acção espectacular com génese no próprio coração do sistema – o Congresso. Pela primeira vez na história da democracia norte-americana os democratas levaram a cabo um protesto contra os republicanos, sentando-se no chão da sala do Congresso e recusando-se a sair até que sejam votadas duas propostas de lei para o controlo da venda de armas no país. O cinismo pode desvalorizar esta acção, sobretudo quando há eleições no horizonte e quando se sabe que não há inocentes nesta incapacidade dos dois partidos aprovarem legislação capaz de limitar os massacres sangrentos cada vez mais recorrentes no quotidiano do país. Há dias, ainda com a memória fresca pelas 49 vítimas de um ataque homofóbico numa discoteca de Orlando, democratas e republicanos boicotaram-se mutuamente na aprovação de quatro propostas sobre o assunto. Sim, as dificuldades são inegáveis, mas esta desobediência civil não é um acaso. E é um sinal surpreendente de vitalidade.

Sugerir correcção
Comentar