Como vai o BE defender a renegociação da dívida sem encravar a geringonça?

Na X Convenção do Bloco de Esquerda, que acontece neste fim-de-semana, há três moções. Em todas há um ponto de acordo: a necessidade de renegociar a dívida. Resta saber se tal pode ser uma pedra na engrenagem socialista da geringonça.

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A X Convenção do BE realiza-se no próximo fim-de-semana DR/Arquivo

São muitos os parágrafos das três moções que vão à X Convenção do Bloco de Esquerda, este fim-de-semana, em que se critica a Europa, se apela à desobediência e se pede a renegociação da dívida. Exemplo do texto que inclui as principais correntes do BE, a de Catarina Martins e de Pedro Filipe Soares: “Só é possível salvar o Estado Social, relançar o investimento e criar mais emprego, rejeitando a chantagem da dívida, renegociando-a de forma profunda e assumindo o controlo público da banca.”

É apenas uma das referências. Está na “Moção A: Força da Esperança, o Bloco à conquista da maioria”. Mas também a “Moção B: Mais Bloco”, subscrita por João Madeira, defende o “combate contra a pressão financeira sobre a dívida, exigindo a sua renegociação”. Na “Moção R: A radicalidade de reinventar a política – Crescer pela Raiz”, subscrita por Catarina Príncipe, endurece-se o tom: “Não aceitar o garrote da dívida é promover a realização de uma auditoria cidadã, recolocando em debate o conceito de dívida odiosa e ilegítima, criando assim as condições para uma renegociação justa de uma dívida insustentável.”

Os três textos serão apresentados e votados na reunião magna de bloquistas, cujo início será marcado, na noite desta sexta-feira, por uma conferência internacional. 

 

A Europa

Todas as moções tecem críticas à Europa. “Vencer a austeridade exige assumir o confronto com as instituições europeias”, lê-se na de Catarina Martins. Mais: “uma esquerda comprometida com a desobediência à austeridade e com a desvinculação do Tratado Orçamental tem de estar mandatada e preparada para a restauração de todas as opções soberanas essenciais ao respeito pela democracia do país.”

Como é que o grupo que suporta este texto defende que tal seja feito? Através da “disputa de maiorias sociais em cada país, impondo instrumentos de soberania popular que permitam corresponder à vontade de ruptura com a usura da dívida e a austeridade.” Essa espécie de luta, continuam estes bloquistas, “não dispensa a cooperação e solidariedade das forças progressistas na Europa, mas convoca toda a esquerda para o confronto com as instituições europeias. É com essa orientação que o BE dialoga com outras forças políticas e movimentos sociais, no Partido da Esquerda Europeia como noutros fóruns.”

O mesmo apontar de dedo à Europa está plasmado na moção B, sendo que, tal como nos outros documentos, não separa o tema “Bruxelas” do acordo à esquerda: “As pressões austeritárias da Europa e da direita sobre o Governo fazem com que o aprofundamento do acordo com o PS seja complexo, embora desejável, no sentido de prosseguir o desmantelamento da política de austeridade e a reposição de direitos sociais”.

A Europa e a dívida também são abordadas neste texto: “a esquerda tem de ter a inteligência de construir uma política e reivindicações internacionalistas concretas que saibam escapar à armadilha da divisão entre soberanistas e europeístas de esquerda.”

Lê-se também que “o BE precisa de manter a questão da renegociação da dívida como pilar central da sua proposta política e económica, sem nunca esquecer que ela tem de vir acoplada com outras questões fundamentais, como o controle público da banca ou a nacionalização dos sectores estratégicos da economia. Só assim será possível travar o caminho ao social-liberalismo de ocupação do espaço político da esquerda hoje.”

 

Crescer à esquerda

Agora, vamos à política interna. Como fica o PS no meio destas críticas, um partido que sempre se disse europeísta? Como se afina a geringonça neste contexto? Na moção subscrita pela actual porta-voz do BE que, se voltar a ser eleita, deverá passar a coordenadora, repete-se a ideia de que este partido não aceitará nada que ponha em causa o acordo: “O BE não aceitará cortes em salários e pensões ou nova carga fiscal sobre esses rendimentos, por via directa ou através do agravamento da tributação de bens essenciais e espera que os parceiros deste entendimento não o violem.”

Os bloquistas aproveitam para lançar um apelo aos companheiros de apoio ao Governo, os comunistas, para que rumem todos no mesmo sentido e deixem as querelas de parte: “O diálogo à esquerda é um elemento importante para a mobilização social. Só com uma mobilização alargada poderá a maioria popular contrapor-se eficazmente à chantagem europeia.”

Esta moção não esquece os últimos resultados eleitorais conquistados pelo BE, considerando que se confirmou que “quanto maior a influência social, a força política e a expressão eleitoral do BE, maior é o avanço da política de esquerda e mais o país se desloca para a esquerda”. Por isso, o partido quer conquistar “às forças do centro a hegemonia que estas ainda conservam junto de largos sectores sociais”.

 

O acordo e a estratégia para o país

O acordo é “insuficiente”, reflecte a moção A, repetindo o que Catarina Martins já disse muitas vezes. Nela se propõe “uma nova estratégia para Portugal, assente em três eixos: controlo do sistema financeiro e combate à corrupção e crime económico para proteger os recursos do Estado e garantir justiça fiscal; investimento na descarbonização da economia, na soberania alimentar e na coesão territorial para criar emprego e combater o défice da balança comercial; e reconstrução dos direitos laborais e combate à precariedade para garantir redistribuição da riqueza e justiça social.

Já a moção B está mesmo disposta a levar “este acordo de incidência parlamentar tão longe quanto possível”: os subscritores farão “todos os possíveis por mantê-lo, traduzindo-o ao longo da legislatura em medidas concretas”. Porém, voltam a alertar: “Sabemos como a pressão da direita e sobretudo da União Europeia vai procurar condicionar a acção governativa, formulando sucessivas exigências de austeridade”.

E deixam um aviso: “Em caso de quebra ou descaminho do actual quadro governativo não serviremos de muleta de apoio a nenhuma solução de Governo que desenvolva intentos contrários à defesa do trabalho, à promoção do rendimento e dos direitos das classes trabalhadoras, à dignidade e à protecção aos idosos, aos pobres e aos excluídos.”

 

A relação com o PS

A resposta que será “indispensável” construir nessa circunstância, “não deixará de ter em conta as diferenciações e rupturas que poderão surgir no seio do próprio PS, procurando favorecer uma recomposição da esquerda, com vista a impedir o regresso da direita”. Para isto, continua a moção B, torna-se “igualmente necessário atrair outros sectores da esquerda socialista e independentes que fizeram experiências de organização recentes.”

Tal como na de Catarina Martins, também nesta se defende a necessidade de continuar a procurar “convergências” com o PCP, “importante aliado no combate contra a austeridade e o neoliberalismo, o que num imprescindível quadro de respeito mútuo não deve apoucar-se com ressentimentos estéreis”.

Já para a Moção R, “a política do PS é insuficiente para responder à grave situação” do país. “O PS continua o mesmo de sempre, apesar de ter feito o que nunca antes tinha feito”, lê-se. Ou seja, “de matriz coerentemente social-liberal, mas pressionado pela correlação de forças saída das últimas legislativas, tem procurado aproveitar o ‘alívio’ momentâneo da crise financeira para reverter no imediato algumas das políticas mais gravosas do reinado da troika e do governo da direita. O seu programa regrediu da ‘austeridade inteligente’ à promessa pura e simples do fim da austeridade”.

No entanto, insistem os subscritores do texto R, “sem renegociação da dívida externa e mantendo-se dentro dos estreitos limites do Tratado Orçamental, acabará por chocar com a realidade e terá de escolher o seu campo: ou a austeridade light ou o campo dos direitos sociais”. O BE, que não haja dúvidas nesta moção, “não deixará de escolher o campo dos direitos sociais, desobedecendo às cúpulas das instituições europeias, afrontando o capitalismo financeiro e saindo do euro, se assim for necessário”.

Neste ponto, as três moções também têm alguma sintonia: “Este acordo só se pode manter enquanto os objectivos mínimos aprovados se mantiverem e/ou a austeridade não voltar por outras portas.” Isto significa, ainda para a moção R, que “cortes nos salários e pensões, aumento de impostos nos bens essenciais, privatizações e mais resgates a bancos em detrimento das finanças públicas, serão medidas que terão a oposição firme do BE e tornarão caduco o acordo de suporte parlamentar ao governo” socialista.

“A esquerda não pode cair na tentação de limitar a sua política à defesa do acordado. É precisa a ousadia da ofensiva em nome dos direitos sociais, do trabalho digno, da justiça social”, lê-se na moção.

 

Críticas: “As bases do BE não servem só para colar cartazes”

Tanto a moção B como a R tecem duras críticas à actual direcção do partido. Para a moção B, subscrita por João Madeira, “é inaceitável que todas as opções estratégicas sejam decididas pelas cúpulas das tendências principais, sem que haja qualquer participação e discussão nas bases”. A moção subscrita por João Madeira diz mesmo que “a vida interna do BE continua a apresentar situações inadmissíveis numa organização democrática”. No texto, lê-se ainda que “precisamos de muito mais do que campanhas de propaganda produzidas por um corpo central de funcionários na sede na Rua da Palma, que desconhecem o estado da organização e o que se passa em baixo, na periferia dos grandes centros urbanos e no interior, e encaram a base do BE apenas para colar cartazes e distribuir jornais”. O que se defende neste documento é que “as estruturas de base do BE têm de adquirir direito à palavra, à opinião e à decisão, vencendo as grandes deficiências em matéria de circulação de informação”. A moção R, de Catarina Príncipe, também aponta o dedo à “macrocefalia de uma direcção que se tem revelado incapaz de delegar competências”, que “afunilou o funcionamento do partido e fez com que as decisões que verdadeiramente moldam o futuro nos momentos decisivos tenham vindo a ser concentradas em cada vez menos mãos.” Recusam, escrevem, “os cultos da personalidade e as direcções omniscientes”.

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