Descoberto cancro transmissível em amêijoas, berbigão e mexilhão

Casos de transmissão de cancro foram detectados em espécies de bivalves que existem nas águas da costa do Canadá e na ria da Arousa, na Galiza, em Espanha. A transmissão, dizem os cientistas num artigo publicado na Nature, ocorre entre indivíduos e também entre espécies.

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Mexilhões (Mytilus trossulus) numa praia em Vancouver, Canada Susan A. Baldwin/ University of British Columbia (Canadá)
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Berbigão vulgar (Cerastoderma edule) na Ria da Arousa, na Galiza, Espanha David Iglesias/ Centro de Investigacións Mariñas (Espanha)
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Ameijoa-bicuda (Polititapes aureus), na Ria da Arousa, na Galiza, Espanha David Iglesias/ Centro de Investigacións Mariñas (Espanha)
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Apanha de bivalves na ria de Aveiro Adriano Miranda/Arquivo

Debaixo da água, o cancro pode ser “contagioso”. Uma equipa de cientistas encontrou casos de transmissão de uma doença semelhante a uma leucemia em “populações” de amêijoas, berbigão e mexilhões. Além de confirmar o contágio numa espécie de mexilhão que já tinha sido descrito antes, o estudo mostra que o "cancro transmissível" existe noutras espécies de moluscos e pode também ser transmitido entre diferentes espécies. Os resultados da pesquisa, que poderá ajudar a perceber melhor o processo de metastização dos tumores nos seres humanos, foram publicados esta semana na revista Nature. E, desde já, fica a garantia dos cientistas: as pessoas que gostam de comer estes petiscos não correm nenhum risco.

Não é a primeira vez que se detectam casos de cancro transmissível no reino animal. Actualmente, há algumas raras formas documentadas de neoplasias transmitidas entre indivíduos. É o caso do agressivo tumor facial do diabo da tasmânia (transmitido por mordidas entre os animais) e de um antigo tumor venéreo em cães (que terá surgido há mais de 10 mil anos e que é transmitido sexualmente). Nos humanos não existe nada semelhante a isto. No pior dos cenários existem alguns cancros que são causados por agentes contagiosos, como os vírus (no caso da relação entre o HPV e o cancro do colo do útero) ou bactérias (quando falamos da Helicobacter pylori e do cancro do estômago). Ou seja, nada que esteja relacionado com células que “saem” de um individuo e invadem outro, multiplicando-se.

É mais ou menos isso que acontece nestas formas de leucemia detectadas debaixo de água. Em 2015, Michael Metzger, do departamento de Bioquímica e Biofísica Molecular da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, nos Estados Unidos e a sua equipa anunciou na revista Cell a descoberta de cancro transmissível em bivalves, especificamente numa espécie chamada Mya arenaria (com o nome comum de clame-de-areia), no Canadá. Apesar de deixar muitas questões em aberto, a descoberta apresentava uma explicação para uma doença detectada naquele molusco nos anos 70 - a neoplasia disseminada, um tipo de cancro, que afecta bivalves em várias partes do mundo - e que fazia com que o sangue dos moluscos engrossasse com um aumento de células ao ponto de se transformar num líquido leitoso, capaz de os matar. No artigo, os autores defendiam que este fenómeno de transmissão horizontal dificilmente seria um caso isolado e deixavam no ar a hipótese desta forma de contágio afectar outras espécies e outras águas, nomeadamente na Europa.

"Um mar de células infecciosas"

Passado menos de um ano, a hipótese é um facto. Os mesmos autores - agora numa equipa reforçada com a colaboração de investigadores de Espanha (do Centro de investigação Marinha, de Vilanova de Arousa, e da Universidade de Alcalá) e do Canadá - descrevem esta semana na Nature casos de transmissão de cancro em espécies de amêijoas, berbigão e mexilhão, de acordo com análises realizadas na Ilha de Vancouver e na costa da Galiza.

“Confirmámos que os cancros contagiosos – linhagens de células de cancro transmissíveis – são muito mais comuns no oceano do que se suponha. Pelo menos, em moluscos”, refere Stephen Goff, professor na Universidade de Columbia, numa resposta por email ao PÚBLICO. Segundo o investigador, este trabalho mostra que “o oceano é aparentemente um mar de células infecciosas que podem invadir animais susceptíveis, e os moluscos serão particularmente susceptíveis porque se alimentam filtrando grandes volumes de água do mar”.

Stephen Goff, que antes de ser desafiado para participar nesta pesquisa se dedicava ao estudo da leucemia em ratos, nota ainda que o trabalho permite concluir que “estes cancros actuam como um novo tipo de agente infeccioso – um novo patogénico”. “Além dos habituais vírus e bactérias, agora temos de considerar as células de cancro como algo capaz de provocar infecções, neste contexto”, adianta.

Os especialistas analisaram casos de cancro em mexilhões (Mytilus trossulus) no Canadá e de berbigão vulgar (Cerastoderma edule) e uma espécie conhecida por ameijoa-bicuda (Polititapes aureus), na costa da Galiza, e concluíram que as neoplasias nas três espécies de bivalves pertenciam a linhagens de cancro independentes. Nos mexilhões e no berbigão a linhagem do cancro era originária da respectiva espécie. Porém, surpreendentemente, as células de cancro encontradas na ameijoa-bicuda pertenciam a uma espécie diferente, a ameijoa-macha (Venerupis corrugata), que existe na mesma área geográfica. Mas, curiosamente, não foi detectado nenhum caso de cancro nos exemplares analisados de ameijoa-macha. Apesar de não existir ainda qualquer prova, os investigadores admitem que esta espécie transmitiu o cancro mas, de alguma forma, terá ficado resistente à doença.

Os investigadores fizeram análises genéticas a espécies saudáveis, exemplares doentes e células de cancro. Tal como aconteceu no caso do diabo da Tasmânia ou do tumor identificado nos cães, os cientistas encontraram a marca do cancro contagioso: os tumores eram geneticamente idênticos mas nenhum correspondia aos genes do seu hospedeiro, ou seja, os cancros não tinham crescido ali apenas tinham aparecido ali.  

Apesar de terem conseguido comprovar que o cancro transmissível se estende a diferentes espécies e pode ser transmitido entre espécies, os investigadores ainda não conseguiram esclarecer os mecanismos deste contágio. “No seu conjunto, estes resultados parecem criar uma imagem de bancos de marisco por todo o mundo envolvidas em microscópicas células de cancro que metastizam dentro e entre as espécies”, escreve Elizabeth Murchison, investigadora na área do cancro da Universidade de Cambridge (no Reino Unido) no texto que acompanha o artigo na Nature. Segundo adianta, a natureza imóvel destes invertebrados que se alimentam filtrando a água sugere que as células de cancro podem flutuar no ambiente marinho e entrar nos hospedeiros pelos seus sistemas digestivos e respiratórios. É uma hipótese para explicar como a entrada das células no molusco. Entretanto, a forma como as células saem destes bivalves fica (completamente) por esclarecer.

E as pessoas?

“Não acreditamos que possa ocorrer algo semelhante a isto nos humanos”, refere Stephen Goff, na resposta enviada ao PÚBLICO, adiantando que “não existe uma forma de transferência fácil entre os humanos e, mais importante ainda, os animais vertebrados têm sistemas imunitários que reconhecem células de outros indivíduos e que as rejeitam. Porém, o investigador nota que “sabendo mais sobre os genes nos moluscos que permitem que as células migrem para outros indivíduos e os colonizem pode ser útil para aprendermos mais sobre o processo de metastização dos tumores nos humanos”.

Mas mais do que a transferência deste conhecimento para algo que possa ser aplicado directamente nas pessoas, Stephen Goff diz que a equipa está ansiosa, por exemplo, em identificar as mutações que estão envolvidas na disseminação das células deste tumor. Outro dos próximos passos da pesquisa será perceber porque é que estes tumores normalmente ficam restritos às suas espécies de origem. “Isto pode ser uma marca de uma função imunitária primitiva que pode, pelo menos, reconhecer células de outras espécies como estranhas”, refere o cientista, salvaguardando ainda que a equipa não vai deixar de tentar explorar também o único caso encontrado até agora de transmissão de cancro entre espécies diferentes.

De resto, e para definitivamente afastar qualquer receio dos consumidores de bivalves, Stephen Goff deixa a garantia: “Não há nenhuma razão para preocupações sobre este cancro afectar os humanos. Não há absolutamente nenhuma evidência de as células alguma vez se terem espalhado para além dos moluscos”. No vídeo da Universidade da Columbia que acompanha a divulgação desta descoberta, Stephen Goff termina com a mesma nota ilustrada por alguém a varrer um prato de uma apetitosa paella: “É perfeitamente seguro continuar a apreciar a sua refeição de marisco”.

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