Os “anos dourados” da Pixar ficaram para trás

Há tanta coisa boa em À Procura de Dory que quase deixamos passar que há qualquer coisa de calculado numa sequela que não fazia grande falta.

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A Pixar de hoje, integrada numa máquina industrial, é muito mais calculista

Será, finalmente, altura de admitirmos que os “anos dourados” da Pixar ficaram para trás. O estúdio de John Lasseter continua a ser o topo de gama da animação por computador, continua a perpetuar as virtudes narrativas clássicas que a casa-mãe Disney parece ter abandonado já há uns anitos na sua rendição ao retorno sobre o investimento dos accionistas, e reencontrou em 2015, com Inside-Out e A Viagem de Arlo, a sua melhor forma depois de um período menos feliz que coincidiu com a instalação de Lasseter como director de toda a animação da Disney. Mas está no momento de aceitar de vez que a “década gloriosa” 1999-2010 é irrepetível. (Recordamos a sequência: Toy Story 2, 1999; Monstros & Companhia, 2001; À Procura de Nemo, 2003; The Incredibles, 2004; Carros, 2006; Ratatui, 2007; Wall-E, 2008; Up, 2009; Toy Story 3, 2010.) À Procura de Dory prova que o estúdio continua a ser capaz de propor filmes inteligentes, sofisticados, arriscados, acima da média; mas prova também que a Pixar de hoje, integrada numa máquina industrial, é muito menos espontânea e muito mais calculista.

Como aconteceu com os Toy Story 2 e 3, À Procura de Dory não é tanto uma sequela de À Procura de Nemo como uma outra aventura no mesmo universo, desviando o protagonismo para a desmemoriada Dory, o peixinho azul que ajudou Marlin a encontrar o filho perdido, e para o seu desejo de reencontrar a sua própria família perdida. Talvez o mais interessante do novo filme seja o modo como, muito discretamente, Andrew Stanton (autor de À Procura de Nemo e Wall-E) e o seu co-realizador Angus MacLane fazem passar a ideia de tolerância e inclusão: praticamente todas as personagens que Dory encontra na sua busca pelos pais, desde um tubarão-baleia vesgo a uma beluga angustiada, têm uma deficiência, física ou psicológica, que revela ser também a sua maior força. Mas é preciso ultrapassar um primeiro acto morno que repete em demasia a fórmula de Nemo para À Procura de Dory descolar a sério, com a chegada da amnésica a um aquário californiano e o seu encontro com um polvo resmungão que a ajuda muito relutantemente.

A partir daqui, o filme atinge a espaços os hilariantes delírios burlescos e o equilíbrio delicado entre emoção e humor dos melhores momentos do estúdio. Mas nunca consegue verdadeiramente afastar a ideia de que não havia verdadeiramente necessidade de regressar a este universo, e que À Procura de Dory é uma espécie de “cedência” à política de franchises da casa-mãe. Nada disso deve ou pode fazer esquecer que este filme é mais uma deslumbrante prova do talento visual dos criativos do estúdio, tecnica e artisticamente quilómetros à frente da concorrência – e a sumptuosa curta que acompanha o filme, Piper de Alan Barillaro, confirma que o talento na Pixar é mais do que suficiente para renovar o stock de criativos. Mas convirá, provavelmente, gerir de maneira diferente a fasquia, sob pena de nunca mais uma produção da Pixar conseguir lá chegar.

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