A era em que a Hungria antecipou o futebol total

No início de 1950 a selecção magiar revolucionou o desporto-rei e denominou a nova filosofia de “futebol socialista”. Seriam os alicerces do futebol moderno. Em Lyon, os adeptos húngaros querem bater o pé a Portugal e prosseguir uma sonhadora viagem no tempo.

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Puskas,ao centro, à entrada para o jogo entre Hungria e Inglaterra, em Novembro de 1953 ARCHIVE ZOLTAN THALY JR/AFP

Dura há três décadas a crise de talentos no futebol húngaro e os seus reflexos são visíveis na selecção. Antes do Euro 2016, a última vez que a equipa nacional esteve presente na fase final de uma grande competição foi no Mundial de 1986, no México, onde não foi além da fase de grupos. Mas houve um tempo em que esta selecção foi uma potência do desporto-rei, formando um combinado nacional que, pela forma impressionante de jogar, iria revolucionar a modalidade e antecipar a era do “futebol total” da Holanda de Johan Cruyff. Eram os dias dos “magiares mágicos” do treinador Gusztáv Sebes e do extraordinário Ferenc Puskás.

Foi nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsínquia, na Finlândia, que a selecção húngara deu, pela primeira vez, nas vistas, ao conquistar a medalha de ouro do torneio, depois de bater a Jugoslávia na final. Mas seria na tarde de 25 de Novembro do ano seguinte que iria arrebatar definitivamente as atenções mundiais, iniciando a construção do seu próprio mito. O palco foi o Estádio de Wembley, em Londres, e o adversário era a Inglaterra. Nas bancadas juntaram-se 110 mil adeptos do país que inventou o futebol. Estavam prestes a assistir a um acontecimento tão histórico como traumático.

No âmbito das comemorações dos 90 anos da federação inglesa, este organismo decidiu convidar o campeão olímpico para disputar um particular que intitulou pomposamente como “partida do século”. Para além do aspecto desportivo, o jogo envolvia também uma forte componente política, num confronto entre a conservadora monarquia liberal inglesa e a comunista Hungria. No final do encontro, o resultado no marcador era chocante para os da casa: 3-6 e um recital de futebol ofensivo como nunca antes tinham visto. Foi a primeira derrota de sempre da Inglaterra em casa frente a um adversário da Europa continental.
A enorme comoção inglesa com a derrota averbada em Londres contrastou com a euforia vivida na Hungria, que seria potenciada ao extremo seis meses depois, quando os britânicos voltaram a ser humilhados, no tira-teimas, então disputado em Budapeste, por 7-1.

“Futebol socialista”

O sistema de Sebes traduzia-se na arrumação dos seus jogadores num esquema táctico WM móvel, no qual a defesa era reforçada com mais um jogador quando a equipa perdia a bola, retomando o 3-4-3 quando tinha a sua posse. E chegava a formar uma configuração com cinco atacantes e mais três no seu apoio nos momentos de pressão ofensiva. Sebes defendia que todos os seus jogadores de campo, excepto o guarda-redes, deveriam ter capacidades para ajudar a equipa a marcar golos e a pressionar colectivamente o adversário em missões defensivas. Foram os primeiros a demonstrar que o sistema podia variar ao longo de um jogo. O treinador adoptou também métodos avançados na preparação física para a altura, que contribuíram para tornar mais completos os seus jogadores.

Esta nova filosofia de jogo acabou por ser denominada como “futebol socialista”, com cada jogador a assumir responsabilidades iguais, tanto a defender como a atacar, com capacidade para alinhar em qualquer posição dentro de campo. Um tipo de futebol que representou uma mudança radical na forma de entender este desporto e uma abordagem que viria a ser, posteriormente, seguida por muitas outras equipas.

O sucesso extraordinário frente à Inglaterra somava-se ao título olímpico e a uma imbatibilidade de quatro anos, que tornaram a selecção magiar no principal candidato ao Mundial de 1954, disputado na Suíça. A Hungria apresentava-se com o seu poderoso ataque, liderado pelo prodigioso pé canhoto de Puskas e pela cabeça de Sándor Kocsis, com Nándor Hidegkuti um pouco atrás, como falso dianteiro centro, e, à esquerda, o veloz e habilidoso Zoltán Czibor. Bozsik, mais recuado, no eixo, funcionava como maestro de uma afinada orquestra, com uma defesa bem organizada, comandada pelo guarda-redes Grosics.

O “milagre” de Berna

A competição começou da melhor maneira para a selecção do Leste, que arrasou a Coreia do Sul, na partida inaugural, por 9-0, e humilhou depois a Alemanha Ocidental, por um esclarecedor 8-3, vencendo o seu agrupamento. A caminhada vitoriosa prosseguiu nos quartos-de-final, com um espectacular triunfo sobre o Brasil, vice-campeão mundial em título, por 4-2, eliminando de seguida o Uruguai, campeão vigente, nas meias-finais, também por 4-2. O caminho rumo à final de Berna estava desimpedido e a Alemanha Ocidental voltava a surgir no horizonte.

A goleada aos germânicos na fase de grupos deixou os húngaros optimistas e mais ficariam quando, com apenas oito minutos jogados, já venciam por 2-0, com golos de Puskas e Czibor. O pior veio depois, quando o adversário empatou a partida também em oito minutos, por Max Morlock (10’) e Helmut Rahn (18’). No segundo tempo, os húngaros continuaram a pressionar e a criar ocasiões de golo, mas pouco a pouco os alemães foram anulando os melhores jogadores magiares e crescendo na partida. O balde de água fria para Sebes surgiu a seis minutos do final, quando Rahn bisou no encontro e entregou o troféu à Mannschaft, num jogo que ficaria largamente conhecido como “o milagre de Berna”.

Foi uma enorme decepção na Hungria. A equipa falhara o seu encontro com a história, mas continuou a ser uma máquina poderosa de praticar futebol, ainda que por pouco tempo mais. Em Outubro de 1956 estalou em Budapeste um levantamento popular contra o regime estalinista, que acabou por apressar o fim da “equipa de ouro”. Quando os tanques soviéticos já estavam estacionados na cidade para esmagar a revolta, vários jogadores internacionais encontravam-se em Espanha, ao serviço do Honved — principal base de recrutamento de Sebes —, a disputar um jogo contra o Athletic Bilbau para a Taça dos Campeões Europeus. Muitas das estrelas, como Puskas, Czibor ou Kocsis, decidiram não regressar à pátria e abandonar a selecção húngara. Era o fim da geração dos “magiares mágicos”.

Mas o legado de Gusztav Sebes iria ser perene e fundamental para o futebol moderno, com reflexos na “Laranja Mecânica” holandesa ou, mais recentemente, no Barcelona de Pep Guardiola. Um dos seus seguidores seria o também húngaro Béla Guttmann, que levou o Benfica aos dois títulos europeus no início dos anos 1960.
Já a selecção húngara entrou, pouco a pouco, numa espiral de decadência e os seus adeptos nunca mais desfrutaram de um leque de jogadores com tanta qualidade como no início dos anos 50 do século passado. Mesmo assim, ainda assistiram a dois grandes sucessos, com a conquista do ouro olímpico em 1964 e 1968. Seria o canto do cisne antes do ocaso, a partir de meados da década de 1970.

A Hungria participaria ainda nos Mundiais de 1978, 1982 e 1986, mas ficaria sempre pela fase de grupos. Já nos Europeus, antes do actual, tinha participado em apenas duas edições, conquistando um meritório terceiro lugar em 1964 e um quarto em 1972.

Renascer das cinzas

Lentamente, o futebol húngaro procura agora renascer das cinzas e a qualificação para esta fase final, em França, foi um primeiro passo no sentido ascendente. O triunfo, por 2-0, frente à eterna rival Áustria, com a qual já compartilhou um império, sobrando hoje uma vizinhança nem sempre pacífica, pautada por uma rivalidade que se estende ao desporto, levou o país a uma sonhadora viagem no tempo. O empate sofrido com a Islândia (1-1) acabou por ter cores de triunfo, pela forma como foi obtido, quase em cima do final da partida, e manteve os magiares na frente do Grupo F, a um pequeno passo (apenas um ponto) de garantirem uma presença nos oitavos-de-final. Falta agora o obstáculo português, em Lyon, para onde estão a convergir os adeptos húngaros, confiantes que a sua estadia em França está para durar.

A confiança é tanta que, após o empate com os islandeses, o capitão Balázs Dzsudzsák surgiu na zona mista com um chapéu de “cowboy” com as cores do seu país e com uma bandeira nacional à cintura. “Estamos a superar todos os nossos sonhos e expectativas. Viemos para o Euro só para concretizar um sonho. Estamos a provar que a nossa qualificação não surgiu por acaso, que merecemos.”

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