Um divã para Cristiano Ronaldo

O capitão de Portugal está sob intensa pressão mediática no Europeu, prova em que assume o estatuto de estrela, face à ausência de outros astros. Mas, até ao momento, ainda não brilhou.

Foto
Ronaldo no treino deste domingo da selecção portuguesa Francisco Leong/AFP

Está cientificamente provado que a ideia de que os peixes dourados têm uma memória inferior a cinco segundos não passa de um mito. Há estudos que comprovam que para um carassius auratus, espécie comum em muitos aquários, as lembranças podem durar, no mínimo, três meses. No peculiar mundo do futebol, como disse no final da década de 80 Pimenta Machado, antigo presidente do V. Guimarães, “o que hoje é verdade, amanhã é mentira” e o prazo de validade da memória de um adepto num país onde os três "efes" (fado, futebol e Fátima) continuam a ser o ópio do povo tende, muitas vezes, a ser ainda inferior ao de qualquer peixe de água fria. O que se passou com a generalidade das reacções ao desempenho da selecção nacional e, em especial de Cristiano Ronaldo, após os dois primeiros jogos do Euro 2016, é um exemplo disso mesmo.

É verdade que os responsáveis pela selecção nacional terão elevado, talvez em excesso, a fasquia antes da partida para França, mas após os dois primeiros jogos de Portugal no Grupo F, quais são os factos? Para chegar aos oitavos-de-final no primeiro lugar, a selecção nacional continua a depender apenas de si; após as duas jornadas iniciais, apenas os espanhóis conseguiram, em ambos os jogos, ter um domínio tão óbvio sob o adversário como os portugueses. O que falta? Colocar a bola no fundo da baliza do adversário e vencer, o que não é, obviamente, um pormenor, mas numa fase inicial onde ainda há margem para erro, Fernando Santos teria mais motivos para preocupação se Portugal não tivesse mostrado em campo que foi, de forma indiscutível, melhor do que dois rivais que estão em França com inteiro mérito.

No jogo de estreia, em Saint-Étienne, Portugal defrontou uma Islândia que na qualificação derrotou a Rep. Checa, a Turquia e a Holanda. Porém, para quem não acompanha a realidade do futebol europeu actual, a vitória portuguesa nunca estaria em causa. Afinal, pela frente estava um país com pouco mais de 300 mil habitantes e estreante na prova. Apesar da valia islandesa, que ficou comprovada no jogo de sábado contra a Hungria, Portugal dominou o seu oponente do principio ao fim, criou uma mão cheia de oportunidades, sofreu um golo na única ocasião criada pelos nórdicos, e a partida terminou com um desnível na estatística raramente visto em fases finais: 27-4 em remates; 11-2 em cantos; 66%-34% na posse de bola.

Sábado, em Paris, já com algumas críticas em cima, o competidor da selecção nacional foi a Áustria, formação que fecha o "top-10" do ranking da FIFA, apenas dois lugares atrás de Portugal. Sem qualquer derrota em dois anos e meio até chegarem a França, os austríacos passearam na fase de qualificação (nove vitórias e um empate), onde ganharam duas vezes à Rússia, para além de terem goleado na Suécia (4-1). Reconhecida por ser uma equipa com dinâmicas ofensivas e por gostar de ter a bola, a "wunderteam" rapidamente cedeu perante a superioridade portuguesa e, excluindo os primeiros 20 minutos, assistiu-se a um jogo de sentido único, com duas bolas nos postes austríacos e números finais novamente contundentes: 23-3 em remates; 10-0 em cantos; 59%-41% em posse de bola.

Os dois empates, claramente mentirosos e que em nada hipotecam os objectivos portugueses em França, deram origem a um chorrilho de críticas e da euforia, rapidamente se passou para a depressão. As nove vitórias consecutivas no apuramento foram esquecidas, o domínio exercido sobre os adversários desvalorizado, e no ponto de mira de quase todas as reacções esteve Cristiano Ronaldo, autor de seis golos, todos eles decisivos, nos seis jogos que fez na qualificação.

Com Messi do outro lado do Atlântico a disputar a Copa América pela Argentina e Neymar colocado pelo Brasil em banho-maria para os Jogos Olímpicos, CR7 chegou a França com o seu estatuto mais reforçado do que nunca. Habituado a ser a estrela de Portugal, o atleta do Real Madrid atingiu um nível de mediatismo sem precedentes e neste Europeu é Cristiano Ronaldo mais 551 jogadores. Por bons ou maus motivos, mesmo em França o português é tema constante de debate nos programas dedicado à prova, os vários jornalistas estrangeiros que acompanham diariamente a selecção em Marcoussis apenas estão interessados no “7” de Portugal, “porque tudo o que faz Cristiano Ronaldo é notícia”, e qualquer aparição do avançado nos estádios provoca histeria colectiva.

Para CR7, nada disto devia ser novidade, mas contra a Islândia e, principalmente, frente à Áustria, o mais internacional jogador português de todos os tempos mostrou evidentes sinais de ansiedade. Após uma entrada em campo com um sorriso que aparentava confiança, a cada percalço no Parque dos Príncipes Ronaldo, sabendo que teria de imediato as câmaras apontadas a si, procurava justificar-se. Habituado a ser quase sempre a solução, CR7 esteve longe de ser o pior - o desempenho de Quaresma foi muito mais decepcionante. Porém, a forma arrastada como se dirigiu para o balneário ao intervalo – excluindo os guarda-redes, foi o último a chegar ao túnel - ou a falta de firmeza com que marcou a grande penalidade, foram sinais de que Cristiano Ronaldo continua fora de jogo. A precisar de fazer um grande Europeu para ambicionar ganhar a sua quarta “Bola de Ouro” e de um golo para tornar-se no primeiro jogador a marcar em quarto fases finais consecutivas (2004, 2008, 2012 e 2016), o capitão português parece preso na sua própria teia.

Como resolver o problema? Apenas Cristiano Ronaldo terá a solução. A meia-folga dada neste domingo por Fernando Santos pode ter sido importante e uma conversa num divã teria sido uma boa terapia, mas como afirmou o seleccionador português, “a grande arma do Cristiano é que reage muito forte”. Bem fresca na memória, está ainda a conferência de imprensa de CR7  em Fevereiro, em Roma, antes de um jogo para a Liga dos Campeões. Sem marcar fora do Santiago Bernabéu desde Novembro, Ronaldo foi bombardeado pelos jornalistas espanhóis com perguntas sobre o “jejum”. Incomodado, o português lá foi respondendo, mas perante a insistência acabou por abandonar a sala de imprensa. Sentado ao seu lado, Zidade, treinador dos madridistas, sorriu e terá pensado que não podiam ter-lhe feito maior favor: no dia seguinte, visivelmente espicaçado, Cristiano Ronaldo foi o melhor em campo e marcou um dos melhores golos da temporada. Se depois de amanhã, em Lyon, Fernando Santos terá ou não sentado ao seu lado o seu capitão de equipa é uma incógnita, mas o mau jogo de Ronaldo contra a Áustria não parece ser uma boa notícia para a Hungria. E para quem tem boa memória, é preciso não esquecer que há quatro anos, no Euro 2012, quando também já tinha passado de bestial a besta, CR7 engatou à terceira, marcando os dois golos que garantiram a vitória contra a Holanda (2-1) e o apuramento para os “quartos”.

As contas de Portugal

Crónica: Só a música nos salvará

Gabor Király, a anti-estrela das calças de treino cinzentas

Sugerir correcção
Ler 11 comentários