Entre Ostermeier e Richter, o Festival de Almada vai respondendo ao mundo

Dois homens de uma grande instituição berlinense, a Schaubühne, deixarão a sua marca na 33.ª edição que decorre de 4 a 18 de Julho.

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A Gaivota, de Tchékhov, na encenação de Thomas Ostermeier ARNO DECLAIR
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Susn, de Herbert Achternbusch, também na encenação de Thomas Ostermeier ARNO DECLAIR
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Città del Vaticano, de Falk Richter MATTHIAS HESCHL
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Ricardo III, na montagem de Tónan Quito FILIPE FERREIRA
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Graça - Suite Teatral, pelo Teatro Meridional FERNANDO VELUDO/NFACTOS

Há um ano, na apresentação do 32.º Festival de Almada, o encenador Luis Miguel Cintra frisava a oportunidade de aquela programação lhe permitir avançar com um Hamlet de quase quatro horas, em tempos que ameaçam a predisposição do público para se confrontar com peças de teatro de duração superior a uma habitual produção de Hollywood. Aconteceu, no entanto, que o Espectáculo de Honra de 2015, atribuído por votação do público, acabaria por premiar as quatro horas e meia da peça em que Joana Craveiro mergulha nas memórias afectivas dos períodos da ditadura portuguesa e do PREC. Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, como é da praxe com o Espectáculo de Honra, regressa nesta edição ao festival: estará de 7 a 10 de Julho no Teatro-Estúdio António Assunção, em Almada.

O Espectáculo de Honra ajuda também a que o Festival de Almada integre de forma clara um dos desígnios que Rodrigo Francisco, director da Companhia de Teatro de Almada e do evento, elege: “Espero sempre que a cada edição o público de Almada saia daqui com um sentido mais crítico e se vá formando connosco”, diz ao PÚBLICO. “Não creio que possamos evoluir como companhia e como festival se o público não evoluir concomitantemente.”

Essa evolução, acredita, faz-se de acordo com um modelo de festival vocacionado sobretudo para o teatro e que tem como farol inevitável no contexto europeu do século XX o Festival de Avignon. Uma das características fundamentais deste modelo assenta na diversidade. E para a exemplificar, o director chama a atenção para a presença na 33.ª edição, a decorrer entre 4 e 18 de Julho, dois nomes cimeiros do teatro europeu contemporâneo, associados ambos à berlinense Schaubühne: Thomas Ostermeier e Falk Richter.

Ostermeier, que em 1999 sucedeu a Peter Stein (homenageado em 2015), à frente do essencial teatro berlinense, esteve no festival em 2002 com a sua encenação de Disco Pigs, de Enda Walsh. “Regressa agora como encenador consagrado, com uma aura de pop star”, diz Rodrigo Francisco, e em dose dupla: com uma versão de um clássico, A Gaivota, de Tchékhov (10 e 11, Teatro Municipal Joaquim Benite), e um olhar sobre um texto contemporâneo, Susn, de Herbert Achternbusch (14 e 15, Centro Cultural de Belém). Encenador residente da Schaubühne, Richter traz ao festival Città del Vaticano (8 e 9, Teatro Nacional D. Maria II), espectáculo desabrido que questiona a influência e a legitimidade das posições da Igreja nos dias de hoje e os seus efeitos na juventude europeia.

Ostermeier e Richter, no contexto do Festival de Almada, acabam por estabelecer um diálogo previsto pelo director artístico. “Citam-se um ao outro” e abrem “um espaço para reflexão e debate”, acredita. E isto porque chocam na sua visão, prolongando “uma polémica e uma tensão estética que existe no teatro europeu contemporâneo”, e que tem na corrente pós-dramática seguida por Richter o motivo de fricção.

Ao longo destas duas semanas de Julho, o Festival de Almada propõe-se “fazer um intervalo da normalidade” e permitir o acesso concentrado a muitos dos nomes mais estimulantes do teatro mundial, entre criadores de créditos firmados e outros em movimento de afirmação. Fundamental para o festival é que a sua programação possa relacionar-se com a actualidade, quer através das temáticas de cada um dos 29 espectáculos, quer pelo contexto em que nasceram ou se encontram inseridos. Housewife, texto de Esther Gerritsen encenado e interpretado por Morgane Choupay (13, Escola D. António da Costa), foi chamado a Almada no impulso de incluir “um espectáculo de Bruxelas”, na sequência dos atentados de Março na capital belga. “Há sempre espaço para estes gestos que vão respondendo ao mundo”, justifica Rodrigo Francisco.

A vez de Itália

Depois de um foco dirigido aos emergentes teatros argentino e ao espanhol nas duas últimas edições, em 2016 o festival dedica um ciclo ao Novíssimo Teatro Italiano, apoiando-se em Itália como “país do Sul da Europa onde a crise económica e a falta de espaço para as novas gerações se faz sentir muito”. “Quando comecei a olhar para estes espectáculos percebi que havia aqui uma voz mais ou menos comum, de jovens companhias e jovens criadores que queriam conquistar um espaço no teatro do seu país e isso não lhes era possível”, diz Rodrigo Francisco. Com uma ampla selecção estilística, o ciclo inclui apresentações do Teatro Sotterraneo, do Illoco Teatro, da Associazione Culturale Civilleri/Losicco, do Dispensabarzotti e da Carrozzeria Orfeo.

Esta edição torna também claro que a atenção dada às cenas argentina e espanhola gerou um lastro que se estende para os anos seguintes, destacando-se as duas presenças sul-americanas: Trópico del Plata (12 e 13), de Rubén Sabadini, e Rat (16 e 17, ambas no Teatro-Estúdio António Assunção), de Juan Mako, sublinham a inventividade da cena teatral de Buenos Aires, que contorna a falta de meios com um investimento no trabalho dos actores. Num programa que inclui ainda o francês Joël Pommerat e os nova-iorquinos La Mama (com um Pílades encenado por Ivica Buljan), e com espectáculos de dança de Maguy Marin, Kibbutz Contemporary Dance e Mercedes Ruiz, a presença portuguesa inclui estreias do Teatro Meridional (A Lição, de Ionesco), Teatro do Bairro (Cimbelino, de Shakespeare), e reposições de Tónan Quito (Ricardo III, de Shakespeare) e Teatro da Garagem (Graça — Suite Teatral, de Carlos J. Pessoa).

A Companhia de Teatro de Almada, por sua vez, lança duas novas produções a que voltará mais tarde na sua programação: Nao d’Amores, de Gil Vicente, numa encenação de Ana Zamora; e O Feio, de Marius von Mayenburg, dirigido por Toni Cafiero. O arranque desta edição, que inclui uma homenagem e “três encontros terapêuticos” a cargo do encenador Ricardo Pais, acontece a 4 de Julho com um concerto sinfónico da Orquestra Gulbenkian, que inclui a obra que Grieg compôs para Peer Gynt, de Ibsen. E como as deixas se sucedem umas às outras, a primeira peça do festival será Hedda Gabler, do mesmo Ibsen, no dia 5, com encenação de Juni Dahr — mostrando, uma vez mais, que isto anda tudo ligado.

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