Espiões causaram “arrepio democrático” a procuradora do caso das secretas

Julgamento entrou na fase final, com o Ministério Público a pedir a condenação da maioria dos arguidos — mas a admitir que manutenção parcial do segredo de Estado pelo primeiro-ministro possa propiciar absolvições.

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Jorge Silva Carvalho (ao centro) é o principal arguido no processo Rui Gaudêncio (arquivo)

A procuradora Teresa Almeida confessou na manhã desta quinta-feira, durante as alegações finais do julgamento do processo das secretas, que algumas das justificações dadas em tribunal pelos advogados dos arguidos lhe causaram um “arrepio democrático”.

Em causa estão práticas proibidas levadas a cabo pelas secretas, como os agentes terem andado a espiar a facturação detalhada do então jornalista do PÚBLICO Nuno Simas, com o intuito de descobrirem as fontes de informação das notícias que ele andava a publicar sobre o descontentamento que existia em 2010 entre alguns funcionários dos serviços de informações. Como compensação, o jornalista pede agora 60 mil euros de indemnização aos espiões.

“Foi dito por um advogado neste tribunal algo que me causou um arrepio democrático: que suspeitas de práticas menos adequadas por parte de um qualquer cidadão justificariam o acesso à facturação detalhada do seu telemóvel. Ora, este é um princípio das ditaduras”, observou a magistrada, que pede a condenação de três dos cinco arguidos. “Podia ser qualquer número de telefone. Em qualquer contexto, com qualquer justificação.”

Teresa Almeida admitiu, porém, que o colectivo de juízas que irá proferir a sentença possa confrontar-se com dúvidas relativamente a alguns dos crimes terem ou não sido cometidos pelos arguidos. É que, apesar de o tribunal ter solicitado ao primeiro-ministro o levantamento do segredo de Estado sobre várias matérias que constam do processo, para que suspeitos e testemunhas pudessem prestar declarações livremente, sem o constrangimento de poderem estar a violar este sigilo, e para os próprios juízes poderem aceder a determinados documentos classificados, António Costa apenas acedeu parcialmente a este pedido. Uma dificuldade que a procuradora admite poder vir a contribuir para a absolvição dos réus, pelo menos em relação a alguns crimes.

Silva Carvalho defende-se

Além do acesso indevido aos dados do telemóvel do jornalista, o principal arguido no processo, o ex-dirigente das secretas Jorge Silva Carvalho, é ainda acusado de violação agravada do segredo de Estado, abuso de poder e corrupção: terá posto as secretas a pesquisar informações para o grupo privado Ongoing, para onde foi trabalhar quando deixou os serviços de informações, no final daquele ano.

Tal como outros arguidos, Silva Carvalho admitiu ter mandado espiar a facturação detalhada do jornalista. Mas nega ter trocado o emprego na Ongoing por informações, e também ter posto as secretas a trabalhar para os interesses daquele grupo empresarial privado.

Questionado pelos jornalistas sobre as afirmações de Teresa Almeida, o antigo dirigente das secretas contra-atacou: acusou a magistrada, mas também o secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa, Júlio Pereira, de “taparem a verdade” neste julgamento, em vez de contribuírem para o seu apuramento. E lamentou que o Ministério Público não tenha revelado, neste caso, uma atitude “mais profissional”, colando-se a uma narrativa que, no seu entender, tem muita imaginação misturada com factos que realmente aconteceram.

Para o advogado do jornalista, Tiago Rodrigues Bastos, se as juízas insistirem em condenar os arguidos por todos os crimes, e não apenas pelos que foram confessados pelos réus — o acesso ilegítimo ao telemóvel de Nuno Simas —, estão a desencadear uma espiral de recursos judiciais por parte dos arguidos que não se resolverá tão cedo. “Este processo não foi um bom momento para as instituições democráticas. E tem todas as condições para se prolongar ad aeternum”, avisou.

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