Um Presidente popular, interventivo, mas uma incógnita para o futuro

Marcelo recebe nota positiva pela popularidade, proximidade e estilo interventivo. Mas politólogos e antigos assessores presidenciais têm dúvidas sobre como vai evoluir a relação do Presidente com o actual Governo.

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Um Presidente interventivo, em lua-de-mel com o Governo, mais próximo das pessoas e mais central na política externa. 100 dias depois de ter tomado posse, a análise à actuação de Marcelo Rebelo de Sousa recebe nota positiva de politólogos e antigos assessores presidenciais. Que, no entanto, não se atrevem a tirar ilações para o futuro. Prognósticos? Só no fim do jogo…

Primeiro, uma análise macro-política. Carlos Gaspar, que foi assessor e consultor político dos Presidentes Jorge Sampaio e Mário Soares, verifica que existe um padrão de ciclos de actuação do Presidente da República que se repete e a que Marcelo não fugiu. “Há ciclos de intervenção e de retracção do exercício da função presidencial que se sucedem”, diz. Nos ciclos de retracção há uma “passividade da função moderadora”, nos interventivos “uma vontade de moldar a estratégia nacional a partir de Belém, o que cria uma tensão com os limites constitucionais do Presidente”.

Gaspar ilustra-os com o passado recente: “Depois de um ciclo interventivo de Jorge Sampaio, existiu um ciclo de retracção de Cavaco Silva no primeiro mandato. Com a reeleição, “em 2011 Cavaco Silva tornou-se mais interventivo” – na altura da demissão do Governo Sócrates – e voltou a retrair-se em 2013, após a crise política do “irrevogável”, em que “falhou a sua tentativa de conseguir um governo de bloco central”.

Neste contexto, considera que era “previsível” que o novo Presidente quisesse “imprimir um mandato mais intervencionista”, até porque tem “boas condições” para o fazer, avalia Gaspar: “O excesso de retraimento do seu antecessor, que não conseguiu ter uma intervenção nem na crise política nem na crise económica” do período do ajustamento, por um lado, e por outro a ausência de um governo de maioria absoluta numa conjuntura em que a economia portuguesa se mantém sob vigilância europeia, deram ao novo Presidente condições para ser muito mais interventivo.

“O que Marcelo Rebelo de Sousa tem estado a tentar fazer é traduzir em actos esta sua centralidade”, considera. E isto tanto a nível nacional como no plano internacional. Dois exemplos: as comemorações do 10 de Junho em Paris e o convite ao presidente do Banco Central Europeu para participar no primeiro Conselho de Estado, que “serviu para tentar compensar a ausência do Presidente no Conselho Europeu”, diz.

Popularidade e afectos

Restabelecer a popularidade do Presidente da República foi um dos primeiros objectivos de Marcelo Rebelo de Sousa. Nisto estão de acordo os três politólogos ouvidos pelo PÚBLICO: António Costa Pinto, Marina Costa Lobo e Carlos Jalali. E ainda Jorge Reis Novais, constitucionalista e antigo assessor para assuntos constitucionais de Jorge Sampaio e Mário Soares: “Ao fim de 100 dias, [Marcelo] recuperou o prestígio e a imagem da função presidencial”. “Repôs os níveis de popularidade que a instituição Presidência da República historicamente tinha”, reforça Costa Pinto.

Jalali vai ao passado recuperar o que o comentador Marcelo dizia em 2013 sobre a actuação de Cavaco Silva: “Na altura disse que estava preocupado com a quebra de popularidade do Presidente, porque isso lhe retirava legitimidade, retirava capacidade de influenciar os outros actores do espaço político”. Mas a verdade é que, nota o professor da Universidade de Aveiro, a popularidade média de Cavaco no primeiro mandato era de 53%, muito próximo dos níveis (entre 55 e 56%) dos primeiros meses de Marcelo.

Para este resultado tem contribuído o “novo estilo político” identificado por Costa Pinto: “Está muito presente no dia-a-dia da vida política, não se trata apenas de ser mais histriónico, mas tem um estilo mais interventivo do ponto de vista discursivo”. Fala demais? Fala o esperado, responde Jalali: “Quando um político chega à Presidência já tem uma imagem pública bem definida. Se mudasse radicalmente, geraria uma dissonância com a realidade”.

Já Reis Novais tem dúvidas sobre se a prática de “falar sobre tudo e todos os dias” será positivo: “Corre o risco de banalizar demasiado o poder de intervenção do Presidente”. No entanto, este professor de Direito realça como positiva a “pedagogia da intervenção política e cívica” que Marcelo tem praticado, a par da sua proximidade com o cidadão comum e a “dessacralização da função presidencial”.

Marina Costa Lobo subscreve: “A forma como ele consegue comunicar e como se relaciona com as pessoas é uma novidade na classe política e é muito positiva”. Com este estilo, “está a angariar um capital político que pode vir a utilizar no futuro”, considera.

Mas será que é só uma questão de estilo ou também de substância? “Parece haver um movimento de fusão entre estilo e substância”, considera Costa Pinto, para quem há um lado ainda bastante obscuro na intervenção de Marcelo no espaço público. Refere-se este investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa ao relacionamento informal do Presidente com os actores públicos, através de contactos pessoais: “É de prever que a sua intervenção seja maior do que parece junto da elite económica, política e mediática”, diz.

Guarda-chuva para dois

Uma análise ambígua merece também a aparente lua-de-mel entre Presidente e primeiro-ministro, ou o Governo, num sentido mais lato. Jalali regressa ao passado para mostrar que esta situação também não é nova. “José Sócrates acaba o ano de 2006 a dizer a Cavaco Silva: ‘Nós gostamos muito de trabalhar consigo, senhor Presidente’” – recorda. “Depois vimos como isso se desvaneceu”.

Para já, a proximidade entre ambos favorece os dois: “Marcelo não quer ser foco de instabilidade, mas vai dando pistas de desvinculação. Para António Costa, o apoio de Belém é útil, tanto pela popularidade contagiante de Marcelo como porque lhe permite actuar junto do centro-direita, tendo no horizonte a possibilidade de eleições antecipadas”.

“É uma convergência instrumental, mas com avisos”, corrobora Marina Costa Lobo, lembrando as posições do Presidente sobre leis polémicas como a das 35 horas ou da Procriação Medicamente Assistida – promulgadas com reparos, o que as fragiliza, como sublinha Reis Novais -, ou ainda a referência ao ciclo político que termina nas autárquicas.

Costa Lobo lembra que Marcelo “não deixa de ser do PSD” e Costa Pinto acrescenta: “É ilusório pensar que Marcelo Rebelo de Sousa tem uma identidade muito grande com António Costa”. Mas também não está hoje particularmente próximo do PSD, lembra este investigador, para quem Marcelo “dispõe de uma autonomia muito maior que os antecessores em relação à base partidária de onde vem”, só comparável à de Ramalho Eanes.

Seja como for, Reis Novais vê a actual proximidade ao Governo como um dos aspectos mais negativos deste Presidente: “Está a dar um apoio objectivo e significativo ao Governo, ao mesmo tempo que se afasta da oposição. Isso não é uma função do Presidente, a sua obrigação é manter-se equidistante, para ser ouvido pelos dois lados”. Além de que, acrescenta, “a aliança de esquerda tem funcionado bem, não precisa sequer deste apoio” presidencial.

Tentação presidencialista?

Se a actual solução governativa é inédita ao fim de 40 anos de democracia, também o Presidente pode ter “uma janela de oportunidade para inovar” em matéria de poderes presidenciais: “O semi-presidencialismo português não esgotou a sua capacidade de inovação”, defende António Costa Pinto, que não vê na actuação do chefe de Estado nenhuma tentação presidencialista.

“Mesmo fazendo avisos e sendo interventivo, Marcelo não escapa ao seu conjunto de valores. Vetos e avisos fazem parte do dia-a-dia do semipresidencialismo português”, considera.

Mas todos estes movimentos podem também gerar novas tensões políticas, avisa: “Não subestimemos os líderes dos partidos políticos portugueses”.

A grande questão colocada por todos é como vai actuar Marcelo quando tiver de enfrentar a primeira grande crise com o Governo. Mas aí ninguém quer fazer de vidente. Marina Costa Lobo é quem mais arrisca, ao dizer que “as coisas podem mudar muito rapidamente” e que “há uma grande probabilidade de correrem mal”. Quando? Depende da evolução económico-financeira, diz: “Pode ser já no segundo semestre”.

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