Austeridade – a sensatez e as demagogias

Talvez o nosso maior défice seja o défice de ideias e de sensatez.

Um dos dramas da política é a simplista obsessão de se catalogar com uma linearidade que a realidade não tem. Esse fundamentalismo pseudo-ideológico tolda a inteligência e a criatividade. Quer-se ser “pró” ou “anti”. São ingénuas hiper-simplificações. A discussão sobre ser-se pró ou anti austeridade tornou-se num debate parcialmente imbecilizante, porque ideologicamente fanatizado. Os tristes cidadãos pagam, com o seu sofrimento, também estes duelos. O mundo não é preto ou branco.

Austeridade é um princípio de sensatez, o de evitar esbanjar o dinheiro dos cidadãos, bem como o de, tanto quanto possível, limitar os gastos aos recursos gerados. Essa via evita a acumulação de dívida, que reduz a capacidade de financiamento numa posterior fase difícil e que cria custos financeiros que drenam a aplicação de recursos em domínios prioritários para os cidadãos e para a criação de riqueza. É um conceito de bom senso. Com todo o respeito, alguém afirmar ser anti-austeridade é um contra-senso. Por outro lado, perante um continuado défice orçamental que gerou uma dívida que nos esmaga, outros dizem-se pró-austeridade com o entendimento de que tal significa cortar custos e extorquir impostos já no campo da insanidade e da desumanidade, mesmo que tal disfuncionalize a própria economia.

Em situações normais devemos evitar qualquer défice. Quando ele existe temos que anulá-lo tão rapidamente quanto possível mas não mais depressa do que é sustentável. Quando, conduzindo um automóvel, constatamos que a velocidade é excessiva, desaceleramos com segurança; não fazemos uma travagem a fundo que nos pode despistar. Pressa é inteligente, precipitação é perigosa. A via inteligente é a de aumentar (muito) a criação de riqueza na economia e de, enquanto esse efeito algo lento se forma, cortar o que é supérfluo ou adiável mas sem incorrer em disparates que destruam a economia, o poder de compra (uma alavanca da economia) e a dignidade dos cidadãos. O que resulta desta matriz de impactos a curto e médio prazo é um défice decrescente a gerir com sensatez. Esse défice temporário exige acréscimos externos de financiamento do Estado. Teremos o acordo dos financiadores? É uma negociação. Os financiadores tentam invocar o ”rigor técnico”, nem sempre com fundamento.

O povo foi dolorosamente endividado por décadas de políticos que decidiram obras faraónicas que os engrandeceram em inaugurações mas que nos destruíram o presente e o futuro. Contudo, não é verdade que as despesas do Estado sejam, em Portugal, elevadas. Mas são pessimamente escolhidas. É um mito que o peso do Estado seja o nosso problema. Em percentagem do PIB, as despesas do Estado são, em Portugal, inferiores às da França, da Áustria, da Dinamarca, da Bélgica, da Finlândia ou da Suécia. O Estado simplesmente tem sido mal gerido e o dinheiro muito mal gasto.

A União Europeia e a Zona Euro assumem posições críticas. Uma parte da dívida monstruosa que nos estrangula foi contraída na realização de obras megalómanas e supérfluas com parcial financiamento comunitário, com o acordo de autoridades europeias, assim co-responsabilizadas. Terão essas entidades a autoridade moral e técnica para nos criticarem com sobranceria? Será sempre austera a forma como a União Europeia gasta rios de dinheiro que provém dos impostos dos cidadãos? Será exemplo de austeridade o facto de o Parlamento Europeu, baseado em Bruxelas, gastar fortunas dos cidadãos em cada mês para, por uns dias, irracionalmente reunir em Estrasburgo, em França? Falta humildade de todos.

A criação da Moeda Única teve vantagens (propagandeadas) e inconvenientes (desvalorizados). Apesar das suas virtualidades, o Euro é uma das principais causas da gradual perda de competitividade da economia portuguesa, enquanto aumenta artificialmente a competitividade da Alemanha ou da Holanda. O Tratado de Maastricht, que instituiu o Euro, inclui componentes pouco sólidos. Embora seja necessária disciplina orçamental no contexto de uma moeda comum, o valor limite para o défice, de 3%, nada tem de rigorosamente científico. É um valor. Em alguns casos um défice de 1% pode ser irresponsável e noutro caso um défice de 4% pode ser inteligente se se focar na aceleração da riqueza nacional, tal como numa empesa que, num momento, investe para incrementar a sua futura rentabilidade. O primeiro país a violar esta “sagrada” regra foi a própria Alemanha. Em qualquer caso, decidir que um país cambaleante, em desequilíbrio financeiro superior a 3%, deve pagar uma multa que o derrube, é uma surreal ideia de burocratas europeus.

Outros defendem um “estímulo” estatal para induzir crescimento, mas num país com um profundo hábito politico de esbanjar em idiotices o dinheiro dos cidadãos existe o risco de se induzir temporária actividade económica que branqueie os indicadores (como os estádios desnecessários do Euro 2004), mas que em seguida afunde o país em nova dívida. Outras formas de estímulo são interessantes, não essas.

Talvez o nosso maior défice seja o défice de ideias e de sensatez.

Gestor

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