A “modernização” do Politécnico é mortífera e salazarenta

Defender a qualidade do ensino superior é promover a pluralidade das suas instituições e as geometrias variáveis das suas associações, não o caduco sistema binário

Desde a sua institucionalização (em finais da década de 70 e meados da de 80 do séc. XX) que o ensino superior politécnico não assistia a uma vaga de hostilizações tão persistente e concertada como a actual: a reorganização do ensino superior pelos sucessivos governos desde 2007 (ano do RJIES de Mariano Gago), o cada vez mais auto-centrado lobbying universitário, os cortes orçamentais dos anos do resgate e novas políticas discriminatórias desequilibraram a relação de forças entre os dois subsistemas do ensino superior, favorecendo cada vez mais o poder universitário e tentando desqualificar o politécnico. Essa ofensiva, claramente assumida pelo governo Passos Coelho, ganhou inesperadamente nova alma com o governo António Costa.

O que está em causa, hoje, no braço-de-ferro entre governo e universidades, por um lado, e ensino superior politécnico, por outro, é sobretudo uma questão simbólica, de poder e de dinheiro: as universidades tentam voltar a ser as únicas representantes do ensino superior; posicionam-se como principais interlocutoras dos governos; e requerem para si a parte de leão dos investimentos públicos no ensino.

Ora, durante as últimas três décadas, as universidades criaram, para garantir a sua sobrevivência, cada vez mais formações tipicamente politécnicas, tentando adequar-se às realidades da profissionalização e dos mercados de trabalho. Os politécnicos, por seu turno, não prescindiram do ensino teórico-prático necessário à formação de melhor capital humano. O resultado deste duplo movimento foi a crescente sobreposição e equivalência de ofertas de formação e a caducidade do statu quo binário, cuja razão de ser se diluiu nas opções e nas práticas de ambos os subsistemas. E tudo isto se fez com a complacência de sucessivos governos, que se limitaram a “deixar fazer”.

Ironicamente, em resultado desse “deixar fazer”, a paisagem do ensino superior mudou e é hoje bem mais rica e plural do que a que governos e universidades pretendem agora impor. Se a insistência na defesa do sistema binário já só exprime a última trincheira universitária, a experiência mostrou que as melhores e mais inovadoras práticas pedagógicas já dependem hoje, e dependerão cada vez mais amanhã, da capacidade de universidades, politécnicos, centros de investigação e outras organizações (fundações públicas ou privadas, por exemplo) se associarem inter-pares para criar ofertas formativas com valências e competências diversas e dispersas por diferentes nichos criativos. O futuro do ensino superior é essa pluralidade e não o sistema binário e a antiga hierarquia institucional que agora se pretende eternizar, tentando ferir de morte o politécnico e reaproximando-o das antigas escolas industriais e comerciais do salazarismo. 

Em nome da “modernização” do politécnico público e da sempre invocada “convergência com os padrões europeus” (que, de todo, não existem nesta matéria), o actual governo propõe agora que o subsistema se especialize em formações curtas, cursos técnicos profissionais (TESPs) e faça investigação aplicada de incidência sobretudo local, abrindo as portas a cada vez mais alunos sem o 12.º ano e ignorando todo o caminho percorrido nas últimas três décadas.

Um tal programa convém decerto a politécnicos do interior, vocacionados para a qualificação de mão-de-obra local. E esses politécnicos bem precisam de programas específicos de apoio que os reconheçam como mais-valias regionais. Mas, para os politécnicos do Porto, Lisboa e Coimbra, capazes de se associar a universidades nacionais ou estrangeiras na criação de novas formações e de serem co-responsáveis das experiências mais inovadoras do ensino superior, esse programa é, pura e simplesmente, dizimador e assassino.

Este diferendo já levou os politécnicos do Porto, Lisboa e Coimbra a suspender a sua participação no CCISP, e não poderá, face ao novo “contrato” proposto pelo governo, deixar de se agravar. O governo está a instigá-lo e a provocar o seu agravamento, em nome de uma reforma cega e supostamente “igualitária”, que põe todo o politécnico no mesmo saco e ignora a desigualdade das capacidades e competências efectivas de diferentes instituições do seio do subsistema.

Muito lamentável seria, para a qualidade do ensino superior público, se a maioria parlamentar de esquerda que sustenta o actual governo permanecesse cega perante essas desigualdades estruturais e também apoiasse a desqualificação do politécnico como um todo. 

A questão dos doutoramentos, por exemplo, é reveladora da guerra simbólica, de poder e de dinheiro que agora se acentua. O interdito legislativo que impede todos os politécnicos de conferir o grau de doutor visa apenas preservar um feudo universitário retrógrado que, em muitos casos, já nada justifica. Se o Estado criou uma agência de avaliação do ensino superior dotada de amplos poderes e autonomia (a A3ES), compete a essa agência avaliar se uma ou mais instituições de ensino superior satisfazem ou não as exigências para criar doutoramentos, independentemente do subsistema que as aloja.

Se a proibição se mantiver, depressa veremos (já estamos a ver) politécnicos associarem-se a universidades estrangeiras que os admitem como parceiros em pé de igualdade para criarem os doutoramentos que não podem criar cá. Quer o governo provocar mais essa guerra institucional? Por ter aceitado preservar esse feudo universitário, o governo está, pura e simplesmente, a apoiar a mais conservadora das arquitecturas possíveis do ensino superior.

Tem-se recordado (sobretudo entre a actual maioria) que conceder doutoramentos a certos politécnicos obriga a rever a Lei de Bases do Sistema Educativo e o RJIES, e que as actuais circunstâncias políticas desaconselham tal revisão, que inevitavelmente seria abrir a caixa de Pandora. Mas o que impede o Governo de fazer alterações cirúrgicas à Lei de Bases? Elas já foram feitas no RJIES num contexto de distracção e de consentimento generalizados. Será que o governo tem medo de assumir essas alterações cirúrgicas, do mesmo modo que a A3ES foi criada para que não fosse o ministério de tutela a assumir o papel que foi cometido à agência?

Se a “modernização” que o governo propõe hoje para o politécnico fosse para a frente, os seus responsáveis poderiam por um par de anos vangloriar-se de ter imposto um igualitarismo basista num território feito de desigualdades estruturais. Mas depressa perceberíamos, todos, que essa seria a vitória do “carácter destrutivo” que em seu tempo Walter Benjamin associou às piores políticas. Defender a qualidade do ensino superior é promover a pluralidade das suas instituições e as geometrias variáveis das suas associações. Não é, nem voltará a ser, defender o “sistema binário” com as suas aberrantes discriminações.

Presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema

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