Entre o burburinho, a festa dos Animal Collective e a energia dos Parquet Courts

No primeiro dia mais concorrido da história do Nos Primavera Sound, o entusiasmo e as conversas alheadas da música conviveram lado a lado. Delas, salvaram-se os Animal Collective e os Parquet Courts. Já os muito aguardados Sigur Rós deram um concerto demasiado morno.

Os passes gerais esgotaram pela primeira vez na história do Nos Primavera Sound e isso notou-se no muito público presente no dia de abertura do festival, quinta-feira. Metade desses passes foram comprados por estrangeiros e tal teve correspondência no terreno: atente-se no muito efusivo grupo de franceses e francesas que abrem uma clareira para dançar muito entusiasmada e descontroladamente enquanto os Parquet Courts tocam no Palco Super Bock, constate-se a omnipresença da língua castelhana em qualquer lugar em que nos encontremos, recordemos os americanos deliciados com a primeira visão do verde do Parque da Cidade e relembremos ainda a quantidade de forasteiros, ao início da tarde, na gare da Campanhã e nas esplanadas que lhe são mais próximas. 

O Nos Primavera Sound já atingiu o estatuto que é a ambição de qualquer promotor e programador. Os anos anteriores mostraram-se tão aprazíveis e recompensadores para o público, quer pela localização e condições logísticas quer, naturalmente, pela música em cartaz, que arriscaríamos dizer que muitos dos presentes estariam hoje no Parque da Cidade ainda que fossem outras as bandas em palco. Esse estatuto, reunido à familiaridade com que passados quatro anos já se vive o festival, tem, porém, outras consequências. Estamos todos felizes por estar ali com aquelas bandas todas e com tantos amigos que se reencontram para falar das bandas e da vida, que as ditas mesmas bandas têm que lutar para que a massa de gente lhes preste verdadeiramente atenção. É uma luta inglória, dado que depende da natureza da música – ou melhor, do volume que esta atinge.

Sofreu com isso Julia Holter, uma das mais interessantes, criativas e tocantes compositoras do nosso tempo, como o comprova o último Have you in my wilderness. A voz e sintetizador, da sua responsabilidade, bem como a bateria e os arranjos em violoncelo, viola e violino, como que se perderam entre o burburinho – o intimismo das canções, enriquecido pelas delicadas tangentes à folk (de câmara, diríamos) que protagonizam, não sobreviveu incólume naquele início de noite. Mesmo se a despedida com Don't make me over, a versão da canção popularizada por Dionne Warwick, tivesse ficado a ecoar nos ouvidos atentos ao palco.

Não sofreram o mesmo os Sensible Soccers ou as US Girls, as duas primeiras bandas a actuar no festival. Como escrevemos anteriormente, foram como que banda-sonora correndo em fundo enquanto o público reconhecia o espaço e se acomodava. E se qualquer coisa sofreram os Wild Nothings, a responsabilidade maior foi mesmo da banda liderada por Jack Tatum, cujo concerto se assemelhou a amostra genérica de bandas e respectivos ascendentes que fizeram parte considerável do “indie” da última década e meia. O concerto tornou-se um jogo melómano que pareceu divertido a início - “olha, nesta agora são os New Order a fazer uma versão do Friday I'm in love'dos Cure” -, mas que rapidamente se tornou deveras cansativo. Melhor seria, de facto, pôr a conversa em dia.

Quando se apresentou a banda mais aguardada da noite, considerando o público aglomerado frente ao Palco Nos, previa-se que todos se concentrassem no som. Os Sigur Rós estavam de regresso e, mesmo sem novo disco, o culto que os rodeia desde que Ágætis Byrjun, o segundo álbum, foi editado em 1999 garante que um reencontro seja sempre aguardado pelos seus fãs com ansiedade e expectativa – os que não se deixam tocar pela música dos islandeses, ora delicada, ora dada a erupções de energia (ou não tivessem eles emergido do caldeirão pós-rock), estariam por aquela hora a rondar as duas zonas de alimentação (a tradicional de todos os anos e a novidade gourmet), aproveitando a ausência de filas para um jantar rápido e descansado.

Arrancando com uma novidade, a inédita em disco Óveður, que já haviam apresentado no concerto do Primavera Sound de Barcelona, enclausurados no centro da estrutura de palco na qual sobressaíam espigões nos quais correriam luzes de néon, os Sigur Rós acabariam também por ser vítimas da tal incontrolável tendência para a conversa animada enquanto a música toca. A verdade, porém, é que o concerto também contribuiu para a distração.

O impacto visual da cenografia, com os elementos da banda transformados nos ecrãs em híbrido humano-digital incandescente, não teve correspondência no concerto, morno e sem rasgo, incapaz de verdadeira explosão quando a bateria e as guitarras cresciam em intensidade, e de arrebatamento convincente quando as passagens ambientais mais intimistas davam espaço a Jónsi para cantar de olhos cerrados e lábios colados ao microfone. Como se esperava, o concerto passou por grande parte da discografia da banda, mas nem a facilidade do reconhecimento foi suficiente para esconder uma tepidez frustrante. Os Sigur Rós são velhos conhecidos dos palcos portugueses, mas o concerto no Parque da Cidade do Porto não será parte importante dessa história particular. Quinta-feira, no primeiro dia de Primavera Sound, o segredo esteve na urgência, na festa – e no volume.

Primeiro, os Parquet Courts, essa dádiva rock'n'roll criada por texanos sedeados em Nova Iorque, irrompeu palco dentro, relógio apontando a meia noite e, com Human Performance, o álbum mais recente, como base do concerto, deu-nos uma efusiva demonstração de rock'n'roll enquanto acumulação de tensão e descarga de adrenalina. Nas suas canções convivem e reconhecem-se os Velvet Underground, os Feelies ou os Wire, para citar três nomes, mas a citação é pouco importante quando o quarteto se entrega com tal crença e ferocidade à música que cria.

Ouvimos o balanço mecânico de Dust, imaginámos o que poderia ter sido Joe Strummer, caso tivesse nascido no Texas, em Berlin got blurry, sentimos um travo baladeiro, devidamente sabotado – baladas não é com eles -, nessa Human performance de refrão explosivo. Ouvimos os vocalistas/guitarristas Andrew Savage e Austin Brown alternarem o protagonismo, o primeiro soltando a voz enquanto ira e catarse, o segundo no seu canto como recitação “reediana”. Tudo terminou em crescendo (o ritmo e o ruidoso duelo de guitarras e levar-nos a imaginar uns Velvet rendidos ao hardcore) que comprovou estarem absolutamente certeiras as palavras que, antes do concerto se iniciar, ouvimos um amigo lançar a outro: “Isto agora é para a rockalhada a sério”. Foi. Tão rockalhada quanto foi festa a sério o concerto que se seguiu.

Ao fundo do palco, um painel pintado como cruzamento de Miró com o Picasso cubista. Pintura que ganhará outra vida quando nela forem projectadas ilustrações de um colorido, digamos, psicadélico-digital. É à frente da tela, e da bateria, que veremos Panda Bear, Brian Weitz e Avey Tare, os Animal Collective. O mote é Painting With, álbum dito lúdico e festivo que, ouvido na aparelhagem, parecia ir por vezes longe de mais nesses propósitos. No Nos Primavera Sound, contudo, tudo soou nada menos que adequado.

Nos seus crescendos e nas camadas de som que se sobrepunham ou desapareciam para acentuar a fruição do ouvinte, a dinâmica era a de um DJ set. O imaginário, esse, era o de um delicioso psicadelismo infantil onde entre harmonias vocais delicadas surgiriam também gritos selvagens – cortesia de Avey Tare -, enquanto os sintetizadores e os efeitos criados sugeriam uma vivacidade juvenil contagiante na sua luminosidade. Naquele preciso momento, os Animal Collective eram tropicalistas digitais, homens da pop em cabine de DJ, experimentalistas enfiados em camisolas do Rato Mickey (bem janota a de Avey Tare), perseguidores do sorriso eterno que se funda na dança e no sonho. Sonhos pop – venha daí Golden gal, venha daí Lying on the grass, a primeira do concerto, apresente-se a contagiante Floridada, a da despedida. Com os Animal Collective, não houve tempo para falar. Estávamos demasiado ocupados com toda a luz e com todo o som.    

Horas antes, às 20h, os Deerhunter de Bradford Cox, com um pé no funk acetinado, outro nas nebulosas shoegaze, e a cabeça nos heróis rock'n'roll de guitarra tremeluzente, tinham dado o verdadeiro arranque ao festival, no que diz respeito à conjugação acção de palco e atenção para com o que o palco mostra. Às 24h chegaram os Animal Collective e fez-se a festa. No final, sorridentes, uns decidiram pôr-se a caminho de casa e recuperar energia para os dias seguintes, outros preferiram aproveitar tudo o que o Primavera ainda tinha para oferecer, ou seja, a agitação dançante no palco Pitchfork. Deslocado nesta edição para a zona de entrada do festival, receberia John Talabot às 4h15.

Brian Wilson, PJ Harvey, Savages, Tortoise, Beach House e Cass McCombs são alguns dos destaques desta sexta-feira no Nos Primavera Sound, que encerra sábado com concertos de Air, Car Seat Headrest ou Ty Segall.

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