Proteger a santidade da vida, mas não a dignidade de quem morre

Valorizar a dignidade implica colocar a liberdade de consciência no seu centro, não a coerção.

1. No passado dia 14 de Maio surgiu no Expresso uma Petição intitulada “Toda a vida tem dignidade”. Acima de tudo, é uma petição que pede à Assembleia da República que proíba a eutanásia (não se fala de suicídio medicamente assistido), opondo-se assim implicitamente à Petição anterior do Movimento Direito a Morrer com Dignidade. Pelo meio, pede-se também a protecção dos idosos e incapacitados, dos mais vulneráveis de uma sociedade, insinuando-se assim que estes poderiam ser assassinados com a despenalização da eutanásia.

2. Fundamentos desta Petição? Considerar-se, sem qualquer complexificação, que a “Vida  Humana” é “inviolável, inalienável, indisponível”. Aliás, se existe esta indisponibilidade, se há uma obrigação de viver até ao fim, penso que os seus promotores devem também pedir a criminalização do suicídio ou de quem o tente, como aconteceu durante séculos. Atendendo a que os promotores e subscritores desta Petição são fundamentalmente pessoas que se afirmam católicas, penso não ser abusivo dizer-se que pretendem que o Estado, embora laico, continue a consagrar em lei princípios que são confessionais, mesmo havendo cristãos bem conhecidos e respeitados que são a favor da morte assistida, como o teólogo Hans Küng, o antigo arcebispo de Cantuária, George Carey e o arcebispo emérito sul-africano Desmond Tutu, entre muitos outros.

3. Inspirando-me na reconhecida obra do filósofo Ronald Dworkin, Life’s Dominion. An Argument about Abortion and Euthanasia (1993; para quando uma sua tradução em Portugal?), creio que as apreciações do valor da vida humana têm na base fundamentos de ordem filosó­fico-espiritual, devendo o Estado abster-se de pretender impor aos seus cidadãos convicções desta ordem. Mais ainda – e vou repetindo outros textos meus -, penso, como ele, que a consideração de que o valor da vida humana transcende ou está para além do valor que a própria pessoa lhe possa dar, possuindo assim um valor cósmico impes­soal e objectivo, é algo que caracteristicamente define uma crença reli­giosa, mesmo que sustentada por pessoas que se consideram alheias ao religioso. Logo, é em nome da liberdade religiosa que os estados demo­cráticos deverão impedir-se de tentar obrigar os cidadãos a optar entre interpretações distintas do valor da vida humana.

4. Pelo menos nos países democráticos, todos atribuímos um alto valor à vida humana, dizendo que tem um valor intrínseco ou inviolável. Mas, segundo Dworkin, há duas interpretações muito distintas desta inviolabilidade. Para uns, a vida humana é inviolável por ser natural ou biologicamente humana, ou seja, por ser uma vida que indubitavelmente se integra na espécie humana, por uma série de características naturais ou biológicas, como por exemplo o código genético. Para outros, a vida humana é inviolável não só pelos seus aspectos biológicos, mas sobretudo pelo investimento humano nela efectuado – do próprio e dos outros, como os pais, os educadores, etc -, acabando por se dar maior importância relativa a esse investimento, à vida biográfica, do que à vida biológica.

Obviamente, esta é uma perspectiva que não concede primazia à defesa da vida biológica sobre o direito à liberdade, como acontece na maior parte das religiões, sobretudo quando se trata dos seus ensinamen­tos oficiais, partindo-se do princípio de que há uma diferença essencial entre estar vivo e ter uma vida.

5. Segundo Dworkin, “Porque valorizamos a dignidade, insistimos na liberdade, e colocamos a liberdade de consciência no seu centro, de modo que um governo que nega esse direito é totalitário, por mais que nos deixe livres em escolhas que têm menos importância. Porque honramos a dignidade, exigimos democracia, e definimo-la de tal modo que uma constituição que permita a uma maioria negar a liberdade de consciência é inimiga da democracia, não a sua autora”.

Assim, a defesa da dig­nidade só possa ser compaginável com «a liberdade individual, não a coer­ção», com «um regime de lei e atitude que encoraje cada um de nós a tomar por si próprio decisões quanto à morte».

6. Se a proibição da morte assistida continuar a ser a opção das nossas sociedades, não nos deixemos pelo menos enganar pensando que não se está a causar um grave dano às pessoas que deseja­riam poder recorrer a ela com segurança, mas que são obrigadas a morrer e a sofrer em desacordo com as suas opções, obrigadas a acabarem o poema da sua vida com estrofes impostas por outros.

Professora Aposentada da UMinho, autora de Ajudas-me a morrer? e A morte assistida e outras questões de fim-de-vida

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