Decisões de Marcelo não travam políticas da esquerda e satisfazem a direita

Bloco disponível para melhorar lei das barrigas de substituição, mas partidos devem manter sentido de voto. Versão final da lei fica sujeita a nova apreciação do Presidente.

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Há quem não perceba a decisão de Marcelo de promulgar as 35 horas e a procriação medicamente assistida Enric Vives-Rubio

Há leituras transversais a fazer ao veto do Presidente da República à lei da gestação de substituição e à promulgação com avisos da lei das 35 horas. Leituras políticas e jurídicas às quais Marcelo Rebelo de Sousa não escapa, tanto mais que anunciou em conjunto (e fora de horas, perto da meia-noite de terça-feira) estas decisões, juntamente com outras quatro: as promulgações comentadas da lei da Procriação Medicamente Assistida, do diploma que enterra a prova de avaliação dos professores, da lei dos contratos de telecomunicações e do novo regime para o património da Casa do Douro. Em termos simples, pode dizer-se que estas seis decisões e a sua forma revelam que o chefe de Estado não quis travar as políticas da maioria de esquerda, mas foi sensível aos argumentos do seu eleitorado de direita.

Marcelo estreou o seu poder de veto político com a lei da gestação de substituição em casos em que uma mulher não tem útero, uma iniciativa do Bloco de Esquerda que recebeu no Parlamento o apoio do PS, PEV, PAN e 24 deputados do PSD (incluindo o seu presidente, Pedro Passos Coelho). Do lado contrário estiveram CDS, PCP, a maioria da bancada do PSD e dois socialistas. Uma divisão de votos sublinhada pelo chefe de Estado na mensagem ao Parlamento: “Não correspondeu à divisão entre Grupos Parlamentares apoiantes do Governo e da Oposição, nem à clássica distinção entre direita e esquerda”. Não o disse, mas a votação corresponde às posições clássicas de todos os partidos, mesmo quando ela é a liberdade de voto, como no PSD.

O BE já afirmou a sua vontade de melhorar a lei, mas ainda que vá ao encontro da posição do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), não há sinal de que algum partido venha a mudar o seu sentido de voto. Resta saber como agirá o Presidente perante a nova formulação, pois perante qualquer alteração o poder de veto é recuperado.

Carlos Gaspar, que foi assessor e consultor político dos Presidentes Jorge Sampaio e Mário Soares, desdramatiza este primeiro veto político e enquadra-o naquilo que chama a “quota de vetos” que o chefe de Estado tem de negociar com o primeiro-ministro. “Há uma pressão crescente por parte do eleitorado natural do Presidente da República para dar sinais que contrabalancem o bloco central entre ele e o primeiro-ministro e que sustenta a maioria de esquerda”, analisou ao PÚBLICO.

Essa “quota de vetos” é, segundo diz, uma prática “relativamente comum e previsível” e “perfeitamente razoável porque é um factor de estabilidade”, embora seja mais comum quando os chefes de Estado e de Governo são da mesma cor política, porque “presume uma certa cumplicidade” entre os dois.

Também em relação à promulgação da lei que repôs as 35 horas na Administração Pública, este mestre em Ciências Políticas e Relações Internacionais considera que o assunto é complexo, mas a sua aplicação sem custos é um problema do primeiro-ministro. Daí que faça igualmente uma leitura política do cartão amarelo de Marcelo – que avisa que poderá pedir a fiscalização sucessiva da lei caso da sua aplicação resulte aumento de despesa, em violação da lei-travão inscrita no Orçamento: “O Presidente, quando se exprime, não é para dar lições ao primeiro-ministro, mas para responder às pressões do seu eleitorado de direita, que está perplexo com a cumplicidade” com o Governo.

Já no plano jurídico, as promulgações comentadas de Marcelo Rebelo de Sousa surpreenderam Jorge Reis Novais, antigo assessor para assuntos constitucionais de Jorge Sampaio e Mário Soares. E pela negativa: “Não faz sentido promulgar uma lei quando se tem reservas sobre ela”, afirma ao PÚBLICO o professor de Direito Constitucional, referindo-se às leis das 35 horas e da Procriação Medicamente Assistida.

Reis Novais recorda que também Cavaco Silva, no início do mandato, chegou a promulgar diplomas com reservas, mas depois abandonou essa prática, talvez porque tenha percebido que “não traz vantagens para ninguém”. Nem mesmo para o Presidente, explica, porque pode criar a “ideia de que, se não tecer nenhum comentário, é porque está totalmente de acordo com a lei, e isso pode condicioná-lo no futuro”.

“Quando há dúvidas, o Presidente deve vetar as leis, para dar à Assembleia da República a oportunidade de as aperfeiçoar”. Ou então enviá-la para o Tribunal Constitucional, como Reis Novais considera que devia ter acontecido com a das 35 horas, pois “levanta muitos problemas e dúvidas jurídicas”. Promulgá-las com recados “enfraquece as leis e não tem vantagem nenhuma, nem para as instituições, nem para o próprio Presidente”, defende o jurista. Que não resiste a uma farpa: “O Presidente da República não é um comentador”.

Entretanto no Parlamento…

Analisar é a palavra de ordem do BE perante o primeiro veto presidencial. O partido está disponível para “clarificar alguns pontos da lei” das barrigas de substituição, desde que “não desvirtuem aquilo que é a substância do projecto do Bloco e a lei aprovada em plenário”, disse o deputado Moisés Ferreira aos jornalistas no Parlamento.

O bloquista não levanta o véu sobre até onde poderá ir: afirmou que o partido “não está disponível para alterar aquilo que é a substância e o corpo da lei”, mas sim para “a clarificar” para que possa “ser confirmada pelo Parlamento”. Apesar das críticas do Presidente, que se ancorou nas posições do CNECV, o BE lembra que o processo demorou “meses e meses” de discussão e que o seu projecto “foi evoluindo com os contributos”.

Marcelo Rebelo de Sousa cita o CNECV para, por exemplo, realçar que não há garantias sobre os “termos da revogação do consentimento e suas consequências”, a “previsão de disposições contratuais para o caso da ocorrência de malformações ou doenças fetais e de eventual interrupção da gravidez”, nem a “não imposição de restrições de comportamentos à gestante”.

Moisés Ferreira recusou a crítica do CNECV de que não estão salvaguardados os direitos da criança a nascer: “O direito da criança e o superior interesse da criança e dos nasciturnos é nascer numa família onde é desejada e onde é querida. Alguém que recorre a uma situação de gestação de substituição é alguém que deseja muito uma criança, que deseja muito ser mãe e o seu projecto de maternidade”, argumenta. “Nascer numa família onde se é muito desejado e querido é meio caminho andado para ter os seus interesses respeitados, na hora em que nasce e durante o seu desenvolvimento”, sublinha.

Já o PS tem uma atitude mais pró-activa que o próprio Bloco. O líder parlamentar, Carlos César – que fez uma declaração de voto exprimindo dúvidas próximas da CNECV - mostra-se quase de mangas arregaçadas para melhorar a lei, “para que alcance todas as suas finalidades e seja precaucionário no que necessita efectivamente de ser”.

Nas restantes bancadas, não deverá haver mudanças de posição. PCP e CDS deixaram ontem claro que manterão o voto contra, independentemente de alterações, enquanto o PSD manterá a liberdade de voto, remetendo cada deputado para a sua consciência individual.

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