Espiral de atentados e ambições de Erdogan ameaçam estabilidade da Turquia

A “guerra escondida” turca chega cada vez mais às suas principais cidades. Muitos curdos estão descontentes com o PKK, mas a estratégia de “combate sem tréguas” do Governo não ganha adeptos para Ancara.

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O atentado de terça-feira no bairro de Vezneciler, em Istambul, matou 11 pessoas OZAN KOSE/AFP
O primeiro-ministro, Binali Yildirim, no funeral dos polícias mortos terça-feira em Istambul
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O primeiro-ministro, Binali Yildirim, no funeral dos polícias mortos terça-feira em Istambul Murad Sezer/Reuters

Entre dois atentados atribuídos ao PKK, o quarto do ano no centro de Istambul, na terça-feira, e o carro-bomba um dia depois junto à sede da polícia de Midyat, no Sudeste, o Presidente da Turquia deu mais um passo na sua batalha pessoal contra os curdos. Recep Tayyip Erdogan promulgou a lei que retira a imunidade aos deputados, uma medida que vai afectar principalmente políticos pró-curdos, investigados em processos que descrevem como “vingança política”.

Parte do plano para criar um sistema presidencial e consolidar em si o poder – com o argumento de que o actual sistema parlamentar não permite fazer frente às ameaças dos islamistas radicais e dos separatistas curdos –, esta assinatura de Erdogan ameaça mergulhar ainda mais a Turquia na guerra. Por um lado, o conflito sírio transbordou para o país, alvo de atentados frequentes dos jihadistas; por outro, a guerra com os curdos está de volta e, ao contrário do que aconteceu nos anos 1990, não se confina a vilas e montanhas remotas do Sul e do Sudeste. A chamada “guerra escondida” chega agora às grandes cidades cosmopolitas.

“Todos os sinais do ataque de Istambul apontam para a organização terrorista separatista”, afirmou esta quarta-feira o porta-voz de Erdogan, Ibrahim Kalin, explicando não ter ainda todos os pormenores sobre o atentado de Midyat, que fez três mortos. “A minha nação deve saber que o Estado da Turquia é forte. É um e está unido”, disse em Istambul o novo primeiro-ministro, Binali Yildirim, depois de visitar os feridos do ataque que matou seis políticas e cinco civis.

Yildirim chegou ao poder no fim de Maio, substituindo Ahmet Davutoglu, e apresentou como as suas duas prioridades reforçar os poderes presidenciais de Erdogan e “um combate sem tréguas” aos separatistas do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão).

Foi há exactamente um ano que o Partido Democrático do Povo (HDP) roubou a maioria absoluta ao AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, pós-islamista) de Erdogan. Era a primeira vez que os curdos concorriam enquanto partido (até então os candidatos apresentavam-se como independentes para não arriscar ficar de fora do Parlamento, onde um partido só entra com 10%) e obtiveram 13,12%, elegendo 80 deputados (entre 550), num resultado histórico.

Com a acalmia no conflito entre Ancara e os curdos, a guerra civil iniciada em 1984 e responsável pela morte de mais de 40 mil pessoas começava a parecer passado. Nesse contexto, os actuais líderes do HDP conseguiam que o partido ultrapassasse a questão identitária da etnia e se apresentasse como alternativa de esquerda, conquistando apoio entre os turcos que não se revêem nas outras formações.

Resposta pesada

Um mês depois dessa ida às urnas, as autoridades aproveitaram um atentado do Estado Islâmico no Sul da Turquia para declarar “guerra total ao terrorismo” e Erdogan dava por encerrado o processo de paz que o próprio iniciara enquanto primeiro-ministro e anunciava o colapso do cessar-fogo, em vigor desde 2013. “Não é possível continuarmos um processo de paz com aqueles que ameaçam a nossa unidade nacional”, afirmava o chefe de Estado. Em simultâneo, deixava claro que queria o levantamento da imunidade parlamentar aos deputados do HDP, defendendo que deveriam “pagar o preço” das suas ligações “a grupos terroristas”.

O aumento da violência por parte dos combatentes curdos nos meses seguintes custou votos ao HDP, cujos líderes negam os laços ao PKK. As legislativas acabaram por ser repetidas em Novembro e o partido baixou para os 59 deputados, enquanto o AKP reconquistava a maioria absoluta.

Desde então, a violência de Ancara contra as zonas onde se concentram os curdos (15 a 20% da população da Turquia) deixou dezenas de aldeias e vilas em ruínas, enquanto cidades como Diyarbakir, Cirze e Nusaybin perderam grande parte da sua população, num êxodo comparável ao que na década de 90 do século passado provocou uma nova vaga de radicalismo.

“A ironia é que há um descontentamento sério com o PKK entre a população curda, mas a resposta do Governo tem sido tão pesada que, na prática, não pôs em causa o apoio ao grupo”, diz Aliza Marcus, autora de um livro sobre a luta curda, numa conversa com o jornal online Christian Science Monitor.

Êxodo de meio milhão

O Governo garante ter morto “7600 terroristas curdos” desde Julho do ano passado, números que o PKK não confirma. O anúncio foi feito por Erdogan, que falou na “maior derrota da organização terrorista na sua história”, horas depois do atentado contra dois autocarros da polícia ter transformado uma das zonas centrais de Istambul num cenário de guerra. Segundo a ONG International Crisis Group, a guerra fez no mesmo período 519 mortos entre as fileiras do PKK e 517 entre as forças de segurança, matando 271 civis e obrigando quase meio milhão de pessoas a fugir dos centros urbanos do Sudeste.

Marcus diz que este êxodo “aumenta o número de pessoas dispostas a juntar-se ao PKK”. Muitas, nota, “estão a abandonar as suas cidades em direcção ao Ocidente do país, o que com o passar do tempo faz crescer o risco de mais explosões nesta parte do país”.

Se os piores receios se confirmarem, e o fim da imunidade servir para perseguir os deputados eleitos do HDP, isso ajudará a convencer muitos que os curdos não podem mesmo ser integrados na política do país e que a única alternativa à mão pesada do Estado é o PKK.

 

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