Governo mudou quase tudo, escolas não mudaram “quase nada”

Estudantes do 2.º, 5.º e 8.º ano fazem as novas provas de aferição a partir de segunda-feira. Em ano de transição, 57% das escolas decidiram aplicar os testes nacionais.

Na Escola Benjamim Sampaio, em Famalicão, “não mudou quase nada” apesar das alterações na avaliação
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Na Escola Benjamim Salgado, em Famalicão, “não mudou quase nada” apesar das alterações na avaliação Adriano Miranda
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Ricardo enfrenta a turma com A volta ao mundo em 80 dias, de Júlio Verne, nas mãos. É a última apresentação do “contrato de leitura” que a sua professora de Português fez com os alunos no início do ano. “Chamou-me o título, escolhi lê-lo e gostei”, conta sinteticamente aos colegas. A poucos dias da prova de aferição nacional daquela disciplina, que na segunda-feira inaugura o novo modelo de avaliação do ensino básico criado pelo Governo, esta parece uma aula como muitas outras no 8.º C da Escola Benjamim Salgado, em Vila Nova de Famalicão. “Já terminámos o programa, agora basta consolidar conhecimentos”, explica a docente, Adélia Silva.

Apesar da aparente tranquilidade, entre os alunos já se instalou algum nervosismo, afiança Adélia Silva. Mas não o suficiente para afectar a rotinas das aulas. “Eles estão a encarar a situação com a mesma seriedade que um exame”, diz a professora de Português, para logo depois acrescentar que, na linguagem dos alunos, “nem é prova que eles dizem, é exame”. Não há, porém, qualquer preparação especial para os dois testes, mas essa não era também uma prática da escola de Famalicão antes da mudança implementada este ano pelo Ministério da Educação.

Gonçalo Silva Lopes é um dos alunos prestes a estrear a novidade no modelo de avaliação do básico. Confirma o “nervosismo” anunciado pela professora, mas desvaloriza a situação. “Eu fico nervoso com qualquer coisa”, graceja este estudante do 8.º C da Escola Benjamim Salgado. Mais a sério, promete “estudar como sempre” para as provas de aferição de Português e Matemática desta semana. A sua escola, um mega-agrupamento criado em 2012, sediado numa escola secundária, mas que tem também responsabilidades sobre uma EB 2,3 e cinco escolas do 1.º ciclo, é uma das que vai realizar as novas provas. Neste ano de transição para o novo modelo de avaliação, o Ministério da Educação deu a possibilidade aos estabelecimentos de ensino de optarem pela realização dos testes nacionais padronizados. A resposta foi positiva em 57% dos casos.

A decisão da Escola Benjamim Salgado provoca sentimentos contraditórios a Gonçalo. “Claro que ninguém gosta de ter que fazer estas provas”, avalia o aluno, “mas são um exercício de treino para o próximo ano, que é muito mais importante”, complementa, referindo-se aos exames nacionais do 9.º ano, que foram mantidos pelo Governo, ao contrário dos de 4.º e 6.º ano. Matilde Gonçalves, que é sua colega de turma, pensa da mesma forma. “Talvez a pressão para o ano não seja tão grande por já estarmos habituados às provas”, antecipa. Ainda que as provas de aferição “não contem para nada”, tem estudado com afinco: “Estou habituada a isso e costumo ter boas notas. Não há-de ser nada.”

Provas em 2800 escolas

A escola de Famalicão optou por fazer as provas de aferição do ensino básico porque “os alunos não podiam chegar ao 9.º ano sem um instrumento mais isento que nos desse informação para lidar com situações de insucesso”, explica o director do estabelecimento de ensino, José Alfredo Mendes. Este professor tem memória do tempo em que não havia quaisquer provas nacionais até ao final do 3.º ciclo. Essa ausência de “instrumentos mais objectivos” de avaliação fazia com que as situações de insucesso se fossem “arrastando”, provocando o abandono de muitos alunos antes do final do ciclo, lembra. Por isso, Mendes temia que as turmas que, por causa das mudanças, acabassem por não fazer nenhuma prova nacional, pudessem sofrer o mesmo tipo de consequências.

O agrupamento de escolas Benjamim Salgado tem sede na vila de Joane, no limite ocidental do concelho de Famalicão. A menos de dois quilómetros, em Ronfe, que já pertence ao município de Guimarães, o agrupamento Abel Salazar tomou uma decisão contrária. “O conselho pedagógico entendeu não estarem reunidas as condições para serem feitas as provas”, explica o director, Silvério Silva. A principal preocupação na altura em que foi necessário tomar a decisão, no final de Abril, era o desconhecimento quanto ao universo de escolas que, em todo o país, iriam aplicar as provas de aferição.

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“O propósito é confrontar os resultados das escolas com os resultados nacionais. Como não estava claro quantas escolas iriam fazer e qual a representatividade dos resultados nacionais, optou-se por não fazer as provas”, continua o mesmo responsável. Agora sabe-se que cerca de 2800 escolas vão aplicar as provas de aferição de 2.º, 5.º e 8.º ano — esta segunda-feira a Português e, na quarta-feira, a Matemática. “Se, à data, já tivéssemos esses dados, a decisão poderia ter sido outra,” admite o mesmo responsável.

Apesar de terem tomado decisões contrárias, os directores das duas escolas do Vale do Ave concordam, no entanto, no impacto que as mudanças no modelo de avaliação tiveram no dia-a-dia das respectivas escolas: pouco, dizem. Na Escola Benjamim Salgado “não mudou quase nada”, garante o director José Alfredo Mendes: “Fizemos tudo o que estava previsto desde o início do ano.” Silvério Silva aponta no mesmo sentido e dá um exemplo. Mesmo sem realizar as provas nacionais, a Escola Abel Salazar manteve os reforços de horas de aulas a Português e Matemática, porque estas “são áreas estratégicas das aprendizagens” e a estratégia estava mais relacionada com a promoção do sucesso escolar do que com a preparação para os exames.

Regras menos apertadas

“No essencial, não mudou nada nas escolas”, confirma o presidente da Associação Nacional de Directores de Escolas, Manuel Pereira. “Mantemos o mesmo rigor e exigência que tivemos nos anos em que foram feitos exames. As únicas alterações foram acertos pontuais em termos de organização da logística da prova”, explica o mesmo responsável.

Apesar de as escolas terem necessidade de mobilizar professores vigilantes e garantir as salas necessárias para o desdobramento das turmas de maiores dimensões, como nos exames, as regras nas provas de aferição não são tão apertadas. Os professores podem estar nas salas dos seus alunos e a realização das provas não implica a suspensão das aulas para os estudantes dos restantes anos lectivos, o que garantirá maior “tranquilidade” nas escolas, defende Pereira.

Em Janeiro, o Governo anunciou um novo modelo de avaliação do ensino básico, que ocupava o espaço deixado pelo fim dos exames de fim de ciclo no 4.º e 6.º ano, aprovado dois meses antes, na Assembleia da República, pela maioria de esquerda. Em sua substituição foram criadas provas de aferição padronizadas e aplicadas a nível nacional em anos intermédios de cada ciclo, no 2.º, 5.º e 8.º ano.

As provas do novo modelo de avaliação deixam de contar para a nota final dos alunos, resultando, em vez disso, numa avaliação qualitativa do nível de aprendizagem dos alunos, dando lugar a relatórios individuais, que serão enviados aos encarregados de educação, e a relatórios globais, entregues aos estabelecimentos de ensino.

José Alfredo Mendes, director do agrupamento de escolas Benjamim Salgado, elogia a medida do Governo. As provas finais do 4.º e 6.º ano “não faziam muito sentido”, porque levavam os alunos, as famílias e os próprios professores “a entrar numa lógica de competição em que o mais importante eram os resultados”. “Nestas idades é preferível uma informação mais descritiva”, defende.

“Serenos e tranquilos”

Longe de estar esquecido por professores e pais está, porém, a forma como foi conduzido o processo que conduziu à implementação do novo formato da avaliação do ensino básico. As alterações foram anunciadas pelo Governo já com o ano lectivo a decorrer e os seus contornos só foram definitivamente conhecidos no final do 2.º período de aulas. “Ninguém contava que o ministério alterasse o modelo em Janeiro”, lamenta o presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, Filinto Lima. Para este dirigente, o Governo “respondeu a um timing político” com esta alteração, mas “esqueceu-se do timing pedagógico”.

Helena Mendes é a presidente da associação de pais da Escola Bernardino Machado, a EB 2,3 integrada no agrupamento Benjamim Salgado. Lembra-se também das semanas “complicadas” vividas pelos pais dos alunos daquele estabelecimento de ensino enquanto não conheciam em definitivo as intenções do Governo. “O ministério não passava a informação cá para fora e entre nós havia muita apreensão”, recorda a dirigente. No seu caso, sentiu também de perto a confusão da filha mais velha, que frequenta o 8.º ano, quando soube que ia ter uma prova nacional no final do ano. “Nos primeiros dias estava surpreendida, mas agora encarou as coisas e está muito tranquila”, expõe.

Jorge Ascensão, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais, ouviu histórias semelhantes à de Helena Mendes um pouco por todo o país. A mudança determinada a meio do ano provocou “incompreensão na generalidade das pessoas” e contrariou aquela que é uma posição antiga daquela organização: as grandes mudanças no sector da Educação devem ser aplicadas apenas no início de cada ano lectivo. Contudo, a poucos dias do início das provas, pais e encarregados de educação “já se conformaram” com a mudança. E agora estão “serenos e tranquilos” à espera de ver como corre o primeiro ano de aplicação do novo modelo.

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