Dar às religiões é roubar ao erário público?

O PÚBLICO falou com constitucionalistas e estudiosos das religiões e não encontrou, nem de perto nem de longe, unanimidade de opiniões.

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As subvenções do Estado a religiões dividem especialistas Nélson Garrido

O anúncio da Câmara de Lisboa de que irá gastar cerca de três milhões de euros num projecto urbanístico na Mouraria que incluirá uma mesquita e várias expropriações desencadeou uma chuva de críticas.

Qual a legitimidade de um Estado laico — ou, no caso, de uma autarquia — para gastar o dinheiro de todos com a crença de alguns? O PÚBLICO falou com constitucionalistas e estudiosos das religiões e não encontrou, nem de perto nem de longe, unanimidade de opiniões.

O argumento do presidente da Câmara de Lisboa de que o município se limita a prosseguir uma política de inclusão religiosa e de reconhecimento patrimonial dos espaços de culto, como já fez quando pagou por exemplo o projecto da igreja católica do Restelo ou o Centro Ismaili da Fundação Aga Khan, entre outros exemplos, não convenceu o constitucionalista Vital Moreira. Num artigo de opinião publicado no Diário Económico, o professor da Universidade de Coimbra explica como o princípio da laicidade “não consiste propriamente num pacífico casamento poligâmico do Estado com todas as religiões, mas sim em não haver casamento com nenhuma delas”.

Num Estado laico deve estar vedada a possibilidade de os dinheiros públicos financiarem a prática religiosa, defende, reconhecendo, porém, que assim não sucede: “Lamentavelmente, a separação entre o Estado e a religião é dos princípios constitucionais mais atropelados entre nós”. Vital Moreira fala de uma instrumentalização recíproca entre a Igreja Católica e o Estado.

Há especialistas que pensam de outra forma. É o caso do constitucionalista Bacelar Gouveia, da Universidade Nova. “É um financiamento legítimo. Se se pode financiar actividades desportivas, também se pode financiar actividades religiosas”, argumenta este especialista em Direito da Religião. A meio do caminho, o também constitucionalista de Coimbra Jónatas Machado considera que este tipo de ajudas pode revelar-se problemático. Mas por outro lado, reconhece, se o Estado já financia clubes desportivos e até partidos políticos e empresas privadas, através por exemplo da concessão de benefícios fiscais, por que razão não há-de financiar igrejas na sua vertente de Estado social? “O princípio da separação entre o Estado e as confissões religiosas não é uma regra de tudo ou nada”, assinala. É preciso, porém, que as subvenções tenham base legal e obedeçam a critérios pré-determinados – algo que sucede nas verbas atribuídas aos partidos, mas que surge imbuído de uma certa opacidade no que à religião diz respeito. “O dinheiro público não pode seguir sem critério para actividades privadas”, avisa o mesmo especialista.

Fará sentido ajudar a pagar uma segunda mesquita, quando já existe uma em Lisboa? A questão não tem grande sentido para o fundador  do Observatório para a Liberdade Religiosa da Universidade Lusófona, Paulo Mendes Pinto: “Também existem em Lisboa várias igrejas católicas. E a distância entre uma e a outra, que fica na zona da Praça de Espanha, justifica a construção da segunda”. O académico frisa que a neutralidade religiosa a que o Estado está obrigado não significa oposição e elogia o local escolhido para o novo templo – “um espaço que já foi islâmico e do qual os mouros foram expulsos”, quando tiveram de abandonar o território nacional . Paulo Mendes Pinto vê porém com maus olhos a falta de critérios legais para a concessão deste tipo de benefícios, que pode fazer com que alguns credos nunca tenham acesso a financiamentos: “Devia haver códigos de boas práticas nesta matéria, em vez de discricionariedade. A Europa tem legislado muito pouco sobre as relações com o universo religioso”.

Mas aquilo que uns louvam, outros condenam. Para o sociólogo das religiões Moisés Espírito Santo, ao pagar parte da mesquita do Centro Islâmico do Bangladesh a Câmara de Lisboa cometeu um abuso de poder, tanto mais grave quanto o local escolhido para o novo templo: “Ao fixar uma crença religiosa em determinado bairro, está a criar um ghetto islâmico, ainda por cima num local chamado Mouraria. É como se regressássemos à situação anterior à reconquista”. O estudioso entende que nem o poder local nem o Estado devem fortalecer esta ou aquela religião, seja ela maioritária ou minoritária, porque isso ultrapassa os valores da tolerância e da liberdade religiosa. Acresce ainda que os crentes do Islão “não necessitam, ao contrário dos católicos, de um local específico para a oração: tanto o podem fazer numa garagem como numa sala ou numa cave, como aliás já sucede em Lisboa”.

“Estar a construir uma mesquita de raiz é imprudente. Nem sequer existem tantos crentes que o justifiquem”, termina.

Já o presidente da associação República e Laicidade, Ricardo Alves, admite que, em bom rigor, nada proíbe este tipo de apoios. “Mas é indesejável que existam”, observa. “A Constituição diz que o Estado deve fomentar a cultura e o desporto. Não obriga a financiar templos religiosos. E há uma grande diferença: enquanto a cultura e o desporto são para toda a gente, as religiões dividem as pessoas em grupos sectários”. O mesmo responsável acrescenta que os muçulmanos nem sequer são das comunidades religiosas mais representativas da cidade. “E, que eu saiba, a Câmara de Lisboa nunca financiou um local para os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus se reunirem”. E dá um exemplo de como devem, no seu entender, funcionar as coisas: “Quem pagou a igreja do Parque das Nações foram os católicos, que fizeram peditórios e reuniram o dinheiro necessário”. Ricardo Alves condena também as verbas gastas pelas autarquias em obras de manutenção de igrejas – algo que no seu entender só se justifica quando se trata de monumentos nacionais.

Ao constitucionalista Jorge Miranda também não repugnam os apoios à igreja: “A Constituição não o impede, de acordo com os princípios da igualdade e da proporcionalidade”. Outra coisa é o montante despendido  na Mouraria: “É capaz de haver aqui um grande exagero. Afinal, já existe uma mesquita numa zona central da cidade”.


 

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